Uma das principais características que diferenciam os humanos dos outros animais é que temos a capacidade de nos colocar no lugar do outro indivíduo. Ao nos imaginarmos na pele de outros seres, nosso instinto de compaixão é aflorado – a dor do outro dói na gente. No entanto, numa realidade regida pela competitividade e pelo cultivo do ego, é possível observar que, a cada dia mais, temos deixado de praticar o nosso lado tolerante, e parece que o instinto da tolerância em algumas pessoas tem estado mais atrofiado do que articulação com reumatismo.
A intolerância – que é a falta de respeito pelas ideias, crenças ou práticas dos demais sempre que essas sejam diferentes ou contraditórias às nossas – tem ganhado sustância principalmente na era digital. Como temos uma imagem que nos representa virtualmente e que muitas vezes nada tem a ver com quem realmente somos, é preciso se destacar entre a maioria. E uma das formas mais rápidas de ser visto, notado e compartilhado – vícios da era digital – é criando polêmica, muitas vezes criticando uma ideia, posicionamento ou opinião do outro. Talvez a ausência de necessidade de olhar nos olhos enquanto se faz uma crítica, já que é possível dizer o que quiser do conforto do seu lar sem ser verdadeiramente visto, dê mais coragem para os intolerantes crônicos.
Todo mundo já conheceu um intolerante crônico. É aquele que vive de apontar “erros” alheios (entende-se por erro tudo aquilo que se diferencia do que ele pensa). É aquele que blasfema, xinga e manda pra putaqueopariu sempre que tem seu ego de classe média abalado por um ponto de vista do qual ele discorda. Pra ele, o contexto do tema não importa – ele vive em busca de migalhas, caçando erros alheios para que possa esfregar na cara do mundo como as pessoas são burras e estúpidas e como ele é inteligente. Esse é aquele sujeito que assiste a um filme só procurando uma falha na edição. É o que vai à festa de casamento, come e bebe todas e vai embora falando mal da coxinha. É o que lê por cima um comentário no Facebook sobre algo com o qual ele não concorda e já desce a lenha sem nem saber direito qual o contexto. É o sujeito que acha cruel caçar a sua própria comida, mas que paga alguém pra fazer o serviço sujo para ele, de modo a garantir que lhe não falte o bife à milanesa de cada dia.
O intolerante crônico também se aproveita das minorias. Ele diz que casamento gay vai atrapalhar o funcionamento da sociedade só porque ele não é gay. Diz que maconha medicinal não pode ser aprovada, só porque ele não tem uma doença terminal para qual ela seria um santo remédio. É contra pesquisa com células-tronco, porque não está sua vida toda numa cadeira de rodas quando já existe uma solução para o problema que está barrada por questões morais. Acha cotas para negros em faculdades um absurdo e espalha depoimentos revoltados de que todo mundo tem chances iguais, só porque ele não nasceu na favela e não teve que largar a escola pra trabalhar vendendo balas no semáforo aos sete anos. Se alguma luta de outro grupo é por algo que não afetará a sua vida, ele simplesmente vai contra – só pra garantir. Esquece que todo mundo um dia será minoria em alguma situação.
Ele domina a arte do “mi-mi-mês” e só vê defeitos, ao mesmo passo em que ignora as qualidades alheias. Se acha incrivelmente bom e evoluído ao ponto de julgar as escolhas dos outros, mas, enquanto ninguém o vê, varre toda a sujeira da sua vida pra baixo do tapete. Arma o cenário, coloca o sorriso no rosto e posta no Instagram um retrato da sua pobreza espiritual.
O fato é que não existe verdade absoluta – o mundo se revela pra gente da forma como escolhemos enxergá-lo. Às vezes, o lado pejorativo de alguma coisa que nos incomoda está na nossa mente. Talvez o que te revolta tanto no outro seja apenas um espelho de algo seu que lhe é desconfortável. Por isso, antes de esbravejar por algum comportamento ou atitude alheia diferente da sua, é sempre bom refletir sobre o motivo pelo qual aquilo te incomoda tanto. As melhores respostas vêm quando a gente fecha a boca e escuta a voz de dentro.
Quando enxergamos almas, em vez de somente corpos, nos tornamos mais humildes, mais sensíveis, mais colaborativos e menos egocêntricos. Por isso, fica aqui um manifesto por um mundo mais tolerante. Um mundo no qual um ser não mata o outro ser somente porque não consegue conviver com o fato de que o outro tem uma orientação sexual diferente da ele. Um mundo no qual as pessoas usem mais essa dádiva exclusivamente humana de poder se colocar no lugar do outro, e finalmente coloquem em prática a primeira lei que deveria constar no Código Penal da consciência de cada um: só faça com os outros o que gostaria que fizessem com você. Um mundo no qual as pessoas deixem de ver somente o externo e, antes de julgar, lembrem que ali, por trás do físico, existe um outro ser com tantas dores e amores quanto você, tentando encontrar um caminho nessa louca trajetória da vida.
(Cena do filme Avatar que representa muito a ideia de reconhecer o outro como um ser igual a você, quando eles dizem um para o outro “I See You”, em português, “Eu te vejo/reconheço.”)Enfim, fica o nosso manifesto por um mundo onde prevaleça a essência de um cumprimento usado no sul da África no qual as pessoas falam:
– SAWABONA (“eu te respeito, eu te valorizo, você é importante para mim“)
e ouvem de volta:
– SHIKOBA (“Então eu existo para você“)