As luzes já se apagaram, as cortinas já se fecharam e na rua só restam lamentos e amores perdidos. Aqui, em nosso quarto, protagonista de tantas histórias que serviriam de roteiro para algum fracasso de bilheteria, nada mais faz barulho, além dos meus pensamentos.
Você acabou de fechar os olhos, e deixou apenas eu e aquela garrafa de vinho que passou o início da noite nos observando acordados. Quando teu sonho tiver início, ela já terá acabado, deixando espaço para o início de um dos espetáculos mais bonitos da história: teu sono.
Nessa hora, tudo merece ser observado atentamente, com precisão cirúrgica: a maneira como teus dedos dos pés, pequeninos e frágeis, se esticam e contraem, como que buscando um chão totalmente novo para pisar. Como teu peito sobe e desce, acostumando-se ao novo ar que você respira. Teu corpo se move lentamente, e é impossível evitar de pensar o que está acontecendo na sua cabeça, lugar onde todos os homens fingem que adorariam entrar, se tivéssemos a coragem necessária para tal façanha.
Um sorriso brota do teu rosto, discreto o suficiente para passar quase imperceptível. Quase. Esse aparecimento, tenha certeza, desencadeia uma sequência de pensamentos que leva qualquer homem do céu ao inferno mais rápido do que a nossa vã filosofia pode supor. É comigo que você sonha ou com outro? Com um futuro próximo ou distante? Eu estou nele? Você ainda me quer?
A garrafa de vinho debocharia de mim, se consciência tivesse. Como não tem, serve apenas para deixar a minha (ainda mais) confusa.
Ainda tentando entender o que acontece, paro para pensar em Vinicius de Moraes e seus nove casamentos. Teria sido a impossibilidade de decifrar o sonho feminino o derradeiro motivo de suas oito separações? Ele morreu sem essa resposta ou teria sido essa descoberta sua causa mortis? Depois de mais uma garrafa de vinho, percebo que se você não me matar – de curiosidade ou de amor, o que vier primeiro -, a bebida o fará. De qualquer maneira, será doce.
Conto mais quatro sorrisos, um deles suficientemente belo para me fazer pensar em soluções para a paz mundial, o conflito na Síria e o impedimento da extinção do urso panda, até que apago. Quando acordo, percebo que esqueci todas as respostas da noite anterior. Isso não me abala, porém, porque seu sorriso ainda está lá. Tampouco me abalo com aquilo que te faz sorrir. Se sou eu, o Ryan Gosling ou um cavalo de cinco cores que ao relinchar reproduz o som de um golfinho, não sei. Se te faz bem, está bom.
Quando raios de Sol invadem a janela e tentam acordá-la, fazendo apenas com que você mude de posição na cama e afaste o lençol do teu corpo – e nesse caso sou obrigado a te agradecer, Sol: obrigado! – fico ainda mais desarmado. Tuas costas, nuas e agora iluminadas, me impedem de tomar qualquer atitude. Ousaria tocar seu corpo, se não tivesse medo de acordá-la e quebrar todo esse encanto. O ciclo precisa ser perfeito, sem influência de fatores externos. Só assim eu terei novamente a certeza que me invade o peito toda manhã: nada é mais encantador que uma mulher dormindo.
Que seja minha última visão em vida. Que eu nunca entenda o que se passa aí dentro. E que, com sorte, eu ainda possa ver esse verdadeiro espetáculo se repetindo milhares de vezes.