• Um conto de carnaval – Sobre amores  carnavalescos que sobem a serra
  • Um conto de carnaval – Sobre amores


    carnavalescos que sobem a serra


    Seu maior temor era descer a ladeira de Olinda e deixar no alto da avenida, entrelaçado aos confetes sortidos do Rei Momo, um pedaço de si mascarado de Arlequim. Nada era mais assustador do que continuar o desfile assim, sem angústias, expectativas ou qualquer tipo disfarçado de carência. Inteira no grosso da palavra, vestindo apenas um emaranhado de serpentinas e lembranças. Carregando na bolsa lateral de lua e estrela um bilhete trocado por um adeus, que quiçá podia ser para sempre. Festa dos corpos, folia do amor. Era março de águas silenciosas premeditando uma tempestade. Era carnaval retumbando lá fora e do lado de dentro também.

    Amor folião era assim, já se sabia. Apego de carnaval não sobe a serra, é o que dizem por aí. O romance é marcado, o beijo é roubado, o encontro de olhares sustenta o compasso até o fim da melodia de Olodum. O enamoramento não é aconselhável mas, quando se vê, o coração também já está em festa. Não há Colombina que resista a um Arlequim cheio de histórias pra contar. Conversam sobre Chico, Caetano, as paixões e os enganos. São tudo e nada no breve bloco do bem-me-quer. E se querem. Desejo despretensioso desfilando sereno enquanto durarem as marchinhas, o circuito ou as vontades.

    Coisa bonita é quando o encontro se dá em meio a uma festa tão pitoresca. O problema todo é não saber muito bem como lidar com tamanha afinidade do acaso. Coração que proclama antecipadamente sua liberdade aos quatro ventos acaba vestido de bobo da corte. Sintonia, empatia e sincronia não têm hora nem data para acontecer. Puramente desabrocha como um botão de rosa no meio de um temporal, totalmente inapropriado e, ainda assim, harmonioso. Felicidade, dessas pequenas que pintam de delicadeza toda a travessia, ser o sorriso carinhoso da festa de outro alguém.

     Tem quem já chega à marquês deixando saudade para trás. Uma possibilidade de afeto na esquina de casa pra quando a festa terminar. Coração segue pesaroso ao se lembrar do aviso de turbulência escrito simples no silêncio daquele olhar. Tem ainda quem sofre só de pensar no último desfile do bloco. Não tem nada que balance mais o ser humano do que a incerteza do amanhã. Difícil desapegar de tudo que nos faz bem, mesmo que pelo breve espaço de um instante. O jeito é aproveitar cada pequena estrofe dessa composição carnavalesca enquanto a multidão ainda samba na rua. Angústia e ansiedade não combinam com o enredo, paz e tranquilidade sim. O que tem que ser tem força demais. E o que não tem também. Amor de carnaval não só pode subir a serra, como descer a ladeira, virar a esquina, trilhar o caminho que quiser. Bem querer é coisa poderosa que só e, pasmem, a tecnologia também. Guardar a inquietude num potinho, que desassossego nenhum nunca fez bom marinheiro. Quem quer faz, simples e suave como uma manhã de domingo.

    Carnaval é mais do que uma festa de rua, é um estado de espírito. Se a folia deste ano trouxer um passarinho migrante, que o outro saiba ser um doce ninho temporário ao invés de apenas um rígido galho de árvore repousante. Que exista troca genuína de beijos, laços, experiências e quem sabe aí, a boa e velha amizade, o alicerce de qualquer relação que se preze, comece a se fundamentar. Esse é o melhor abadá que se pode vestir, aquele que garante boas recordações e vínculos sinceros até o próximo carnaval chegar. Ninho é como lar, é pra lá que a gente sempre volta quando o coração começa a suspirar miudinho dentro do peito. E nunca se sabe quando um suspiro folião vai “tiquetaquear” o nome da gente.

    O medo de descer as ladeiras de Olinda não impediu a Colombina de ceder aos encantos do doce Arlequim. Se o encontro seria duradouro ou carregado de inconstância não importava. Ainda assim o universo havia se encarregado de preencher aquele momento de ternura e eternidade. É disso que a vida é feita, de momentos imprevistos, ao lado de pessoas inesperadas, que se tornam absolutamente inesquecíveis.

     Nos bolsos cheios de saudade misturados aos últimos confetes daquela estação, os respectivos bilhetes de despedida, que mal sabem eles, enfeitariam de flores e exclamações o primeiro capítulo desse romance:

    – Menina Colombina, ainda me encontro em pleno carnaval…

     Que as portas e janelas nunca se fechem para uma permissividade de encontros e sentimentos que não deveria ser sazonal.

    – A festa continua, menino Arlequim, e eu já escuto os teus sinais.


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