E chega um dia em que a gente se pega apaixonado. Mais apaixonado do que nunca. Mais do que pelo Felipe, aquele menino gracinha do pré-primário, de cabelos cacheadinhos e olhos curiosos, inquietos, trapaceiros, de cigano oblíquo e dissimulado. Mais do que pelo Tobias, aquele cachorrinho feio, mas extremamente companheiro e dócil,que morreu quando a gente tinha uns oito ou nove anos e deixou no ar um luto que parecia que ia durar uma vida inteira. Mais do que pelas tardes de bolinho de chuva e chocolate quente na casa das amigas na época do ginásio, quando a gente largava os cadernos no sofá da sala e não queria sair do quarto nem com ameaça de bomba. Mais do que pelo oitavoanista jogador de basquete, que era o amor de onze entre dez meninas quando a gente tava na quinta série.
Chega o dia, enfim, em que a gente se apaixona de verdade. E que a gente percebe que é amor. Com direito a cafuné antes de dormir, beijo apaixonado logo depois de acordar e sentir saudade antes mesmo de ir embora. Com direito a um peito com encaixe perfeito para a nossa cabeça, um companheiro para os nem tão legais almoços de família e uma química que faz um beijo arrepiar até o pelo da canela. Tudo muito bem, tudo muito bom, tudo delícia cremosa. Até que, diante de tanta paz e de uma felicidade que beira o êxtase, uma armadilha fica iminente: a armadilha da possessão. Do “ele é só meu”. Do “ela nasceu pra mim”. Do “independente do que aconteça”. Do “para sempre”. Do “amor eterno”.
Hollywood, Manoel Carlos, os romances clássicos, a burrice e companhia limitada criaram na nossa cabeça um universo de fantasia onde ter um final feliz é o destino obrigatório de todo e qualquer ser humano ~do bem~, que paga suas contas, seus impostos e que faz carinho nos cachorrinhos de rua. E que ter um final feliz, por sua vez, está intimamente atrelado a ter alguém pra amar – que é, inclusive pra mim, a mais genuína e gratificante forma de felicidade, mas que, convenhamos, está longe de ser a única. E que se deus escreveu por aquelas famigeradas linhas tortas, não há o que tire ele de você. Nem incidentes, nem acidentes, nem o Papa. Nem a sua displicência ao conduzir uma relação. Nem o seu ciúme sufocante e doentio. Nem a sua falta de carinho. Afinal, ele é o homem da sua vida. Nasceu assim: etiquetado com o seu nome, como os cadernos da segunda série. Como uma propriedade sua.
E é aí que soa o alarme em toda e qualquer pessoa com o mínimo de noção da vida e de amor-próprio. Gente nasce, cresce e morre com livre arbítrio e não é (ou não deveria ser) propriedade de absolutamente ninguém. Todo mundo, quer esteja solteiro, ficando, namorando ou casado, tem o direito de ir e vir. E ficar é uma decisão que a gente toma todos os dias. Quando acorda sorrindo – ou chorando de emoção. Quando almoça com fome e sem preocupações – ou com a preocupação de fazer com que cada detalhe daquela viagem planejada com carinho dê certo. Quando deita na cama e dorme tranquilamente – ou troca o sono por uma boa noite de sexo ou aquelas conversas sobre a vida que se estendem até o sol raiar.
Porque construir um amor de verdade é como dar um laço. E laço é diferente de nó. Laço precisa de cuidado. Precisa de alguém pra aparar as pontas, pra cortar os fiapos, pra firmar o tecido. Precisa de companheirismo, de compreensão, de sinceridade. E no final de tudo, é bonito. Simples, mas bonito. Diferente do nó, aquele amarrão forte que a gente dá uma vez só que é pra prender de vez e não encher o saco. Não exigir preocupação. Não soltar, por mais que machuque os dedos e arrebente a linha.
Sem dúvida, é infinitamente mais fácil dar um nó. Mas eu prefiro cuidar do meu laço. Afinal, como já dizia vovó, contrariando a sabedoria duvidosa do Waze, nem sempre o melhor caminho é o mais curto.