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    Não sou a maior entendedora de futebol. Mas tenho olhos curiosos, ouvidos atentos e manifesto aquela maldita – ou bendita – doencinha que atinge 80% da população mundial de quatro em quatro anos: a paixonite aguda pela Copa do Mundo. Se eu pudesse, dava um pause no mundo até o próximo dia 13 e viveria de luz, água da torneira e Copa do Mundo na televisão. Tenho assistido a alguns jogos. Tenho me surpreendido com algumas zebras. Tenho ficado eufórica com os jogos decididos na prorrogação ou nos pênaltis. Tenho me emocionado com a campanha de países como a Costa Rica – eu e minha mania de sempre torcer pelos colonizados. E, assim como quase todos os brasileiros, tenho observado o desempenho da seleção brasileira em campo.

    Digo do alto da minha ignorância futebolística que não é dos melhores. Mas também não é dos piores – senão teria sido eliminado na primeira fase do torneio. Ouvi muita gente ridicularizando o nosso empate contra o México. E desacreditando sem precedentes na escalação de Felipão que – olha só que vergonha! – precisou de prorrogação e pênaltis para vencer o Chile nas quartas de final. Seleção que não ganha em tempo regular nem nas oitavas jamais terá cacife para ser a melhor do mundo. É o que dizem as más línguas, ignorando completamente o fato de que o tal México, aquele time facinho que ficou no zero a zero com a gente, mas que teria tomado uma sacolada de qualquer time europeu, venceu a temível Holanda até os 42 minutos do segundo tempo nas oitavas de final. E que o Chile, time contra o qual registramos muitas vitórias historicamente, foi um dos responsáveis pela eliminação precoce da Espanha, então campeã do mundo. Isso pra não falar do sufoco que, assim como nós enfrentamos nas oitavas, Argentina, Alemanha, França e Bélgica levaram para vencer respectivamente Suécia, Argélia, Nigéria e Estados Unidos – seleções que variam entre o “tem um time ok” e o “não conheço o nome de um jogador sequer”.

    Mas eles, os nossos hermanos e os europeus, estão perdoados. Afinal, eles têm Messi, Thomas Müller, Benzema e Fellaini. O problema mesmo é o Brasil, que quer resolver o jogo apenas com o Neymar. Ironias à parte, sim, nossa seleção poderia estar melhor. Mas será que somos tão ruins quanto a maioria da população brasileira acredita que somos? Para mim e para todos os estudiosos sociais, essa criticidade desmedida é culpa de um mosquitinho que picou o Brasil no período colonial e que transmitiu a nós um vírus mortal e sem cura: o complexo de vira-lata, como dizia o finado e sábio Nelson Rodrigues.

    Se fosse só no quesito futebol, ok. Mas o complexo de vira-lata toma conta de nós em todos os possíveis e imagináveis âmbitos. No político, quando criticamos os programas de assistencialismo social, como o Bolsa Família, mas ignoramos que na França, o país das fragrâncias inesquecíveis e da pomposa torre Eiffel, um mero seguro desemprego pode se estender por até 36 meses e as famílias são aportadas financeiramente de acordo com a quantidade de filhos. No econômico, quando achamos um absurdo que o nosso PIB possivelmente cresça apenas 1,1% em 2014, mas fechamos os olhos ao desemprego espanhol, que vem apresentando recordes históricos. No social, quando nos indignamos com a postura do menino da favela que ouve música alta no celular dentro do ônibus, mas achamos o máximo o negão do Bronx carregando aquele rádio enorme colado à orelha. No cultural, quando denegrimos qualquer música brasileira de fato popular e intitulamos cultsaqueles que escutam rocks gringos dos anos 70 – como David Bowie e seu nada erudito “suck, baby, suck, give me your head” em Cracked Actor.

    Sinônimo para o tal do complexo de vira-lata é a falta de autoestima, de certa forma, imputada em nós desde a nossa formação como povo brasileiro, tropical e miscigenado. Dizia-se, até meados dos anos 20 ou 30, que a grande desgraça do Brasil era seu povo miscigenado. E se hoje, internacionalmente, o liquidificador brasileiro é visto com muita admiração por ter formado esse povo tão bonito e hospitaleiro, nós continuamos com a mentalidade do início do século passado. Ah, de que adianta São Paulo ter um dos metrôs mais limpos do mundo se o povo é mal educado? De que adianta os sites estrangeiros de turismo colocarem o Rio de Janeiro como uma das cidades mais bonitas do mundo se o carioca é folgado e sempre quer ganhar vantagem em cima de todo mundo? Que não me faltem minhas férias em Itacaré, mas convenhamos que a Bahia não vai pra frente porque baiano gosta mesmo é de uma rede. A Amazônia é a floresta tropical de maior biodiversidade do mundo, mas é empesteada por aquele bando de índio preguiçoso, que quer ter smartphone, mas não quer trabalhar. Um país em que o livro da Bruna Surfistinha vira best-seller? Tem que ser esse povinho de merda, que não sabe o que é cultura.

    Temos realmente muitos problemas, mas será que a gente é tão lixo assim? Será que realmente somos vistos como esse povo odioso, pobre de espírito e sem nada a acrescentar? Creio que não. Só nesse período de Copa, já vi pelo menos uns cinco textos gringos exaltando o Brasil ecomportamentos brasileiros que poderiam ser exportados para todo o mundo – tal como a nossa hospitalidade com os estrangeiros, a nossa higiene e os nossos abraços calorosos. Sei que isso não é suficiente para fazer de um país um exemplo – e que o Brasil ainda precisa avançar em diversos setores para ser um lugar ideal para se viver. Mas já é um bom começo.

    E seria ainda melhor se você, em vez de subir aos céus e analisar o Brasil do plano espiritual, como se você não fizesse parte dessa massa ~de merda~, se inserisse no contexto e pensasse no que pode fazer para mudar a situação que tanto o desagrada nesse país. Porque se algo o incomoda, você deve ser o primeiro a levantar a bunda da cadeira para tomar alguma atitude. Se estivéssemos conformados com um ~Brasil de merda~ há 40 anos, muito provavelmente teríamos sido ainda mais subjugados por uma ditadura militar. Se estivéssemos resignados com uma ~tarifa cara para um transporte público de merda~, certamente não teríamos conseguido a revogação do aumento do valor o transporte público em 2013. Se aceitássemos continuar na ignorância, não teríamos 98% das nossas crianças entre 7 e 14 anos na escola.

    Depende – também – de nós. Como sempre dependeu.

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