• Sobre o mito do “a gente não  escolhe por quem se apaixona”
  • Sobre o mito do “a gente não


    escolhe por quem se apaixona”


    Paixão é desses acasos afortunados da vida que acontece de mansinho. Quando se vê, já é chuva de vagalumes em noite de lua cheia, sorvete de flocos na tarde de domingo, paz e aconchego em um verão caloroso qualquer. Ao menor sinal de vulnerabilidade lá está ele tomando as rédeas da nossa integridade emocional e, colocando por terra, todo e qualquer sinal de racionalidade que poderia interferir no direcionamento das nossas escolhas. Aquele discernimento que antes era tátil, literalmente palpável, fica cada vez mais distante e se torna reflexo direto de um sentimento que pode, muitas vezes, ter seu caminho distorcido dentro da alma da gente. Arredia, traiçoeira e ardilosa, a paixão esconde amarras invisíveis que só manifestam sua prisão quando o indivíduo se encontra em total submissão. Nem dependência, nem carência, nem subordinação, a pior faceta da paixão é a vitimização.

    A gente não escolhe se apaixonar, mas permanecer envolvido naquela circunstância que o sentimento em si trás, é sim, escolha nossa. Desvendar o universo do outro pode até ser um processo demorado, apesar de que particularmente, eu acredito que caráter e integridade ficam evidentes já no primeiro lance de olhar. O tempo apenas revela a fundo aquilo que já costuma ficar claro no primeiro abraço desleixado e no sorriso desconcertado de canto de boca depois do beijo. A questão é: se determinado relacionamento/sentimento/pessoa não se enquadra dentro da nossa travessia, seja por falta de reciprocidade, por alicerces pouco fundamentados, seja por inversão de valores ou perda da identidade da parceria, porque cargas d’água continuamos alimentando a paixão?!

    Infelizmente, ao invés de nos colocarmos na posição de donos do nosso destino, das nossas escolhas, das nossas mancadas e “pés na bunda” preferimos adotar o posto de vítimas. Vítimas de um sentimento que floresce contra a nossa vontade consciente, de uma fantasia criada através de uma parceria ilusória e unilateral, de uma expectativa totalmente projetada no outro que só contribui para acelerar o processo de destruição da nossa autoestima. Você não escolheu gostar de fulano(a), não merecia passar por isso, não está sendo alvo do Karma, Murphy, muito menos de uma ira do universo. Você é fruto do seu livre arbítrio, da sua carência e da sua falta de amor próprio em assumir passivamente uma condição que não devia ser nem mesmo transitória.

    Por mais dolorosa e impossível que pareça, a gente sempre tem opção. De se afastar, de não retornar a ligação, de não corresponder às investidas, de pedir claramente para que o outro respeite seu espaço, de calar a mágoa até secar por inteiro aquela dor e finalmente partir para outra. Dói, machuca, arranca um pedaço da coragem da gente, mas é possível de ser feito. Aliás, um simples “não” costuma abrir e fechar portas de forma muito mais eficaz do que contar para toda a sua rede social como está se sentindo, postar no Instagram uma frase de autoajuda e republicar em 140 caracteres como você é um pobre coitado que não tem sorte no amor. Concordo plenamente que ser racional sob muitos dos “efeitos tóxicos” da paixão, dependendo do enredo, é particularmente muito, muito difícil. Mas ninguém é obrigado a se contentar com algo que não acrescenta em nada na nossa vivência.

    Se não engrandece, não enobrece, se não nos torna melhor como pessoa e parceiro, simplesmente não tem lugar marcado na nossa viagem rumo à felicidade. Aceita, chora, esperneia, toma um porre e então supera. Você não quer ser alvo da piedade de ninguém, muito menos fazer parte das cruéis estatísticas sobre as pessoas que transformam um sentimento saudável em algo doentio. A gente quer reciprocidade, permissividade e respeito vindos de livre arbítrio. Tá na hora de tirar a venda dos olhos, retomar a altivez desse olhar e preparar o coração para que sentimentos em sintonia consigam por si só estabelecer morada. O único estereótipo que a paixão merece é de minha aliada. Qualquer rótulo que minimize meu personagem perante uma história de amor, merece ser destituído pelo mais voraz e sublime dos sentimentos: aquele amor próprio que me encara olho no olho feito pássaro liberto, e não de cima para baixo, como um bicho acuado aprisionado em um abrigo hostil.

    danielle


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