Você chega em casa e sente tudo, sente até a falta, mesmo ele estando lá. Sente que poderia encher a casa de gente, chamar os amigos mais próximos, comprar dois ou três barris de cerveja e fazer barulho pra incomodar o síndico, ainda assim ele continuaria lá, provocando falta.
Daí você percebe que ele não liga. Não liga mais pras coisas e nem liga pra você. O sofá de dois lugares parece o Grand Canyon e ele parece estar do outro lado do rio. Você se pergunta se ele tiraria o lixo e prefere varrer pra baixo do tapete você mesma.
Na cozinha a louça se acumula como o seu desapontamento. São pilhas e mais pilhas de pratos e embalagens de congelados, são talheres e refeições que não combinam, cada um pede a sua. Enquanto ele mexe nas panelas, você tem a certeza: nunca foi tampa, sempre foi peneira. Ele não a queria pra tentar de verdade, ele ainda gosta dela.
Ela pode não ter passado, mas você achou que sim, que já tinha sido, que ele queria tentar dessa vez. Ele parecia querer também nos primeiros jantares, no domingo no parque, até naquela vez que ficou com o seu cachorro pra viajar. Parecia que era quando vocês dormiram juntos e ele te abraçou, quando rolou um beijo matinal mesmo com bafo, quando o sexo na chuva fez os dois ficarem resfriados.
Você não entende. Por que ele não se dedica, por que não vira tudo do avesso e põe uma escola de samba dentro de casa pra mostrar que tá reagindo? Ele tá em fade out, sumindo pelo rodapé da sala. Você então decide que não nasceu pra aturar isso, mas poxa, como queria que desse certo. Você dá um ultimato e fala pra ele que não aguenta mais viver assim, num relacionamento à distância na mesma casa. Droga, você queria mesmo.
Ele então some. E leva uma parte de você, te deixa feito peneira, cheia de buracos que só são vistos quando você chega na janela e entra luz. Passa um dia, passam quarenta. A louça diminui, você até passou a cozinhar em casa, não é mesmo? Liga o som de casa e bota um samba animado. Nada de Cartola, você vai de Noel Rosa hoje. O sofá pra dois te dá conforto, você já consegue dormir nele. O buraco acabou.
Quando um amor que só faz da gente peneira pra tapar alguma coisa que não é nossa, a gente nem percebe que foi colocado na vida de alguém pra preencher e guardar o espaço e o tempo que é de outra pessoa. Estamos ali só ocupando espaço para deixar o outro menos solitário. Até que um dia as coisas mudam e a gente percebe que não pode viver assim pra ninguém. Que não tem necessidade de ser peneira, e talvez nem de ser a tampa da panela. Pra quê, se você pode ser a panela inteira?