Quantas vezes eu deixei objetos e mensagens na portaria daquele prédio? Meia dúzia de vezes, pelo menos. A cada ruptura eu passava lá, neuroticamente, para deixar as coisas dela que haviam ficado em minha casa: roupas, colares, óculos, livros. Era um jeito bobo e agressivo de sinalizar minha disposição em me afastar — e uma evidência patética, definitiva, do quanto eu não estava conseguindo. Por que não enfiar as coisas da ex numa gaveta e deixá-las por lá, envelhecendo? Porque assim eu não teria uma desculpa para me aproximar, ainda que indiretamente, da mulher cuja ausência me adoecia.
Mas a portaria não servia só para isso. Ela era — como em outras relações com outras mulheres — uma espécie de caixa de correio humanizada, onde se deixavam flores, mensagens, lembranças e pedidos. O porteiro — às vezes gentil, outras vezes entediado — funcionava como in- termediário involuntário às manifestações do espírito humano. Por meio dele, passavam correntes de sentimentos que podiam variar da paixão exaltada à simples delicadeza. Um dia, uma rosa e um bilhete. No outro, um óculos que fora esquecido. Às vezes, um poema.
Os porteiros são testemunhas de muita coisa boa — e ruim — que acontece em nossa vida. Eles veem amores nascerem e desmoronarem. São testemunhas de conversas inacabáveis e românticas dentro do carro, e de cenas envergonhadas de choro que emergem, repentinamente, dos mesmos automóveis, meses depois. Num dia, sobe o seu Fulano para a casa da dona Sicrana. No dia seguinte, sobe o Beltrano. O porteiro não comenta, mas percebe: o cara que está pegando geral, a moça que trocou de namorado, o sujeito que pede pizza, deprimido, todo sábado à noite. Uma parte importante da vida se desenrola ali, naquela breve passagem entre a rua e o elevador.
Nós contribuímos para isso terceirizando parte de nossa existência ao porteiro. Como as entregas de encomendas (indesejadas) costumam ser desculpas para o contato emocional (igualmente indesejado), se não queremos ver alguém, usamos a portaria como barreira de proteção. O cara liga, lembra que está com seus livros e diz que gostaria de devolvê-los (isto é, encontrá-la). Qual a saída mais fácil se você não tem vontade de rever o sujeito? “Deixe na portaria, por favor”. Rápido, higiênico e indolor (para você, não para ele).
Os homens também se valem desse tipo de expediente, de forma até mais direta. Tenho um amigo que vive enrolado com várias mulheres e que tem no porteiro um aliado fiel. Quando meu amigo está acompanhado de uma mulher em casa, o porteiro diz a qualquer outra visitante inesperada que ele não está. “Se a ex-namorada bonita e temperamental resolve visitar meu amigo de surpresa, o porteiro, avisado de antemão, nem usa o interfone. “Seu Fulano não está. Se a senhora quiser, deixe uma mensagem que eu entrego”. Na prática, ele mistura as funções de secretário e segurança.
Como tudo mais, esse aspecto menor de nossa existência revela algo importante sobre a forma como vivemos. Mostra que não resolvemos boa parte de nossas pendências afetivas sem olhar nos olhos. Usamos o telefone, a internet, a portaria. É moderno, mas suspeito que não seja lá muito saudável. O uso sentimental da portaria sugere, também, que estamos nos tornando menos cuidadosos no trato com os outros. “Deixe na portaria” é uma forma impessoal e rude de informar que não se deseja ver alguém. Tenho a impressão, ao final, que isso tudo acontece porque estamos nos envolvendo com mais gente, muito mais gente, no decorrer da vida. Para lidar com essas múltiplas relações e seus efeitos imprevisíveis, precisamos de ajuda prática. O porteiro está lá para fazer isso — proteger nossa privacidade, alimentar nossa esperança e liquidar a dos outros quando isso se fizer inevitável.
*Texto originalmente publicado no novo livro de Ivan Martins: “Um amor depois do outro”.