• Você é minha crase
  • Você é minha crase


    Sentado no sofá, eles se abraçavam e fitavam um vaso com flores. Ele balançava uma perna, inquieto, e com um dedo enrolava os cabelos dela. A outra mão, encostada em uma almofada, trançava desenhos, círculos – o infinito?

    Ela apoiava a cabeça no ombro dele e deixava uma mão entre as pernas, na altura dos joelhos. A outra era tentada a estar apoiada na perna imóvel e a dar tapas na que se agitava. Quebrando o silêncio, depois de muito pensar, ela disse:

    “Acho que gosto de você”.

    Sem tirar o olhar do vaso, ele respondeu “Cê jura?”.

    “Juro. Percebi que apesar de muitas coisas que poderia estar fazendo agora, das muitas amigas que poderia estar vendo, prefiro ficar aqui olhando para um vaso e dando tapas na sua perna. Para de balançar. Se controla.”

    Olhando para ela, ele respondeu:

    “Não consigo. É involuntário. Nunca leu sobre a síndrome das pernas inquietas?”.

    “E você?”.

    “O que tem eu?”, indagou ele. “Você sente a mesma coisa? O que acha de mim?”.

    Sem precisar de outro tapa para aquietar a perna, ele pensou e disse: “Acho que você é minha crase”.

    “Sou sua crase?”, ela respondeu pausadamente. “Isso. Minha crase.”

    Percebendo que ela havia ficado intrigada com a resposta, ele explicou: “Sabe, quando eu era pequeno, tive uma professora que me ensinou um jeito diferente de entender a crase. Ela dizia que era como a pessoa que a gente mais gostava no mundo.”

    Curiosa, ela se desencostou dele e perguntou: “Como assim?”.

    “Essa professora dizia que toda vez que gostamos de alguém e fazemos de tudo para estar junto dela, não perdemos nossa voz, só sentimos vontade de juntarmos a nossa com a dessa pessoa. E a crase funciona mais ou menos assim. É uma evolução particular de cada língua. No português, ela suprime o ‘a’ que se repetiria. E pra mostrar que ali tem algo sério, carrega um acento grave. Por isso que acho que você é minha crase. Devo estar na frase certa, naquela em que eu poderia repetir com algum ‘a’ qualquer, mas por evolução prefiro seguir junto com você.”

    Já sem jeito e querendo mudar de assunto, ela perguntou: “Mas e como você aprendeu a usar a crase assim?”.

    “Não aprendi. Só entendi que apesar de gerar discussões e ser um problema de vez em quando, a língua pede que ela exista. E acho que, agora, mesmo inconscientemente, peço pra você existir na minha vida.”

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