• Pra Você Acreditar Que  Esse Amor Não Era Tão Importante
  • Pra Você Acreditar Que


    Esse Amor Não Era Tão Importante


    Você se deu mal. Achou que preenchesse uma vaga relevante na minha lista de coisas relevantes, mas não. Não mesmo. Uma camisinha suja descartada na faixa de pedestres da Avenida Paulista é mais relevante do que você. Uma aranha esmagada na parede do meu quarto também. Uma roda de liga leve aro 17 pro carro do sobrinho da minha tia-avó é mais relevante. Um cisco infernizando tudo o que enxergo é trilhões de vezes mais relevante do que você. E sabe o que eu faço com esse cisco? Eu expulso ele da minha vida com dedo, água e sopro. E ele vai embora. Viu como eu trato coisas relevantes quando elas me machucam?

    Eu nem me lembro da primeira vez que te vi. Prefiro liberar espaço para tantas outras primeiras vezes em que vi tantos outros caras, por quem nem me apaixonei. Tinha aquele do primeiro colegial, com os olhinhos caídos. A primeira vez que meti o olhar nele, ele tava. Ele tinha a mochila trepada no ombro esquerdo. Não, ele jogava futebol na quadra. Na verdade, eu acho que ele descia a rua do colégio fumando. Ou tava de pé no pátio da escola. É isso. Acho que foi assim. Sentado, igual a você naquela noite bebendo cerveja quente. Me encarando como se eu fosse verde. Os seus olhos, que já são imensos, arregalados me estuprando. Eu incomodada com a atenção de um psicopata. Gostou dessa? A primeira vez que te vi, eu te chamei de psicopata. Você me aborreceu. Aquela foi só mais uma noite comum. Foi só mais uma sexta-feira. Foi só o aniversário de um amigo. Foi primeiro de setembro.

    Eu não faço mais ideia da sua aparência. Mas posso detalhar em dois mil caracteres sem espaço o jeito como o cabelo de um vizinho irrelevante, como você, flutua quando ele desce uma escada. O cabelo dele é. Eu não sei que cor é aquela, mas talvez seja macio. Talvez seja liso. Completamente diferente do seu, por onde os meus dedos adoravam se enroscar ofegantes. Textura de cabelo seco. Minhas mãos violentando fios durante um beijo. E o  seu cabelo tinha cheiro de. Eu posso dizer a marca de todos os produtos que você metia ali. Mas não estou a fim.

    Eu esqueci como você anda. Sobreviva a essa bomba. Deletei mesmo. Posso provar. Era você? Aquele dia no teatro. No intervalo da peça. Alguém usava os ombros afastados como os seus. Alguém roubava o seu andar. Eu sei, pois fui envolvida por esse impostor até que ele se revelasse. Era mais baixo. Talvez um centímetro mais baixo. Quase tropecei no seu truque. Quase te vi e nem cogitei telefonar. Você não acredita em mim? O seu número não habita mais a agenda de telefones relevantes. Eu nem sei se termina com sete ou com três. O fato de ter certeza de que começa com nove não tem um pentelho de significado.

    Eu nem decorei a primeira frase que você me enfiou, então não fique achando que encharquei a calcinha à primeira dialogada. Mas eu decoro a maioria das frases que perambulam por aí. Sei que quem com ferro fere, com ferro será ferido. Que o amor é importante, porra. Que sou mesmo exagerado, adoro um amor inventado. Que vocês vão ter que me engolir. E que as mina pira. Frases muito mais relevantes do que aquela pergunta estúpida sobre me conhecer. Posso te conhecer? Você largou essa em cima de mim. Sem me dizer Oi. Sem me perguntar que horas eram e se eu vinha sempre aqui. Na porta do banheiro. Uma noite praticamente apagada. Você agarrou o meu braço direito, me proibindo de fugir daquele momento, que hoje é só lacuna. Você faz assim sempre? Com qualquer mulher irrelevante você faz isso? Continue. Pode ser que uma delas, não eu, eternize na agenda a sua abordagem brutal. Agarrar um braço direito. Quanta inexperiência.

    Eu não sei quando você foi embora, porque eu tinha coisas mais relevantes pra fazer. O copo cheio de água soluçou na minha mão e se desfolhou no piso. Eu agrupei os cacos dentro de uma caixa em formato de. Em formato de coração. Um deles giletou os meus dedos, que perderam a sensibilidade e têm como último suspiro a lembrança de se esfregar naquele emaranhado de fios de cabelo seco. Uma lembrança irrelevante. Já até passou. Nem sei como era.

    Eu não sei por que comecei a escrever sobre essas memórias idiotas. Nem sangrou. Nem chovi. Quando retomo a lista de coisas relevantes, esbarro com o seu nome riscado. Eu não disse? Irrelevante.

    Você não permitiu que eu te desse um lugar.


    " Todos os nossos conteúdos do site Casal Sem Vergonha são protegidos por copyright, o que significa que nenhum texto pode ser usado sem a permissão expressa dos criadores do site, mesmo citando a fonte. "