Meados dos anos 90 – um pouco depois do Senna morrer, um pouco antes da Copa de 98 e do Ronaldo esmorecer – e eu era apenas um garoto ranheta e magrelo que não entendia nada sobre o mundo. Meu mundo, naquela época (e entenda “época” por algo em torno de seis meses), era a Carla, e ninguém poderia me convencer do contrário. Nosso contato, porém, era restrito: um ano mais velha (ah, as mulheres maduras…), Carla estudava no pré, enquanto eu era um infante do Jardim 2. Como o destino dá seus jeitos, para minha sorte a pré-escola era pequena, e as turmas eram divididas por mesas, o que me permitia sempre ir à mesa da Carla puxar papo e contar histórias.
O problema é que eu não sabia puxar papo nem contar histórias. Eu não sabia nem contar até 10. Carla, porém, era ainda menos avançada no que se referia às lições de casa, o que acabou tornando-se meu golpe de mestre: para conquistá-la, toda manhã me recordo de ir até sua mesa e fazer sua lição. Na minha cabeça, tudo estava resolvido e não demoraria muito para a Carla se apaixonar por mim e sermos felizes para sempre na hora do recreio, mas a professora acabou achando que eu era avançado demais para a minha idade, convocou meus pais para uma reunião e me fez pular um ano.
Ela saiu da escola dois meses depois.
Algum tempo depois, no Ensino Primário, minha família surtou e decidiu fugir da megalomania paulistana. Viajamos centenas de quilômetros até Minas Gerais, mais precisamente na cidadela de Nova Ponte, com 20.000 habitantes. E eu calhei de me apaixonar pela mais encantadora criatura dentre as poucas milhares de pessoas que ali moravam: Cárita. Dela me lembro um pouco mais: sardas, bochechas salientes e aparelhos nos dentes. Pode não parecer o arquétipo de beleza padrão, mas era uma gracinha. Eu juro.
E a Cárita adorava andar de bicicleta. Eu morria de medo daquele monstro de duas rodas que contrariava as leis da física, mas três semanas, um pai confuso e algum dinheiro investido depois, estava pedalando como o Lance Armstrong, e o único doping que poderiam me acusar era a alta taxa de oxitocina, o hormônio do amor.
Voltamos para São Paulo em alguns meses.
Início do Ensino Fundamental: espinhas aparecem em lugares que você nem conhecia, dezenas de desilusões amorosas ficam para trás e eu me vejo em busca de um novo amor. Heloísa – Helô para os íntimos, e eu nunca fui um deles -, vinda de Batatais para São Paulo, entra em minha turma. Amor à primeira vista e nenhuma criatividade para me aproximar dela… Até a menina puxar um dos livros da série Harry Potter da mochila. Voilà! Era tudo que eu precisava saber. Sete dias, uma mãe confusa e algum dinheiro gasto depois, já havia lido todas as edições lançadas até então e teria muito o que conversar com minha nova musa – cujos olhos nem consigo me lembrar se eram verdes ou azuis.
Ela voltou para Batatais depois das férias de julho.
Se um dia Carla, Cárita, Heloísa ou qualquer outra paixonite se encontrar nessas palavras e lembrar de mim, saiba que estou bem. Que meu coração se machucou algumas outras vezes, que machuquei outros e que sou grato por tudo: o ano adiantado me ajudou muito, ando de bicicleta sempre que posso e ainda sou fã da saga do Harry Potter.
Que possamos, todos nós, amar da mesma forma que fazíamos antes de distorcermos a palavra e o sentimento: como se a pessoa que faz nosso coração acelerar fosse a dona do nosso mundo – pelo menos até o mandato acabar.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
(Vinícius de Moraes)