• Um Agradecimento Às Vadias Da Minha Vida
  • Um Agradecimento Às Vadias Da Minha Vida


    Nunca vou me esquecer dela. Sim, ela. Aquela morena que descia a rua lá de casa, na periferia de São Bernardo, no melhor estilo saia curta, decotão e salto quinze. Ela era bonita, sabe? O rebolado dela era bonito, aqueles cabelos cacheados pela cintura eram bonitos, a segurança daqueles passos era bonita. Mas a gente era a incondenável patrulha da moral e dos bons costumes, que botava o despertador para tocar às cinco e quarenta só pra se debruçar na janela às seis e vê-la voltando de mais uma noite de diversão. E a gente insistia em julgar a moça porque as saias dela estavam cada vez mais curtas. E porque ela voltava levemente embriagada para casa nas madrugadas de sexta. E porque, quando o sol de domingo já ameaçava dar as caras, ela descia do carro de um homem que – diziam por aí – nunca tinha pedido a mão dela.

    Também nunca vou me esquecer da Janaína*, que não acordava todo dia às quatro e meia, mas que foi assunto para o comitê das irrefreáveis línguas afiadas dos moralistas do Ensino Médio do colégio de classe média alta onde eu era bolsista. Isso porque Janaína, aos 16 anos, fez um boquete. Um boquete, gente. Um simples boquete, que Frans, Júlias Rebeccas, Sandys, Xuxas, Angélicas, Marias Madalenas eu e vocês provavelmente já fizemos nessa vida. Talvez não aos dezesseis – talvez aos quatorze ou aos dezoito ou aos vinte e quatro. Mas um boquete que – convenhamos – não é crime, não é feio e não diminui ninguém, a não ser o pau do parceiro, que no começo da brincadeira estava duro e no final ficou murchinho. O problema é que aquilo era demais pra gente, sabe? Ter que conviver com alguém que, aos dezesseis anos, provavelmente quatro depois de ter menstruado pela primeira vez e de ter visto a natureza roubar-lhe a infância sem dó nem piedade, já tinha colhões para assumir o próprio prazer. Prazer esse que, convenhamos, corre pelo nosso sangue desde que nos conhecemos por gente – toda criança é um perverso polimorfo, já dizia Freud.

    E assim como a vizinha e como a Janaína, outras mulheres não me passam esquecidas. Lembro-me da Laura*, a menina mais velha que tinha chegado à minha cidade e à minha escola fugida de um caso de revenge porn lá pelos idos de 2003 – não, Fran não foi a primeira e não será a última vítima dessa canalhice. E da Leila Diniz, que eu sequer conheci, e seu clássico “eu posso dar pra todo mundo, mas não dou pra qualquer um”. E da Cássia Eller – como esquecer? –, que levantou a camiseta e mostrou os peitos para um Rock In Rio inteiro. Elas não me saem da cabeça durante um minuto sequer, num misto de arrependimento e agradecimento. Porque eu fiz parte da patrulha da moral e dos bons costumes. E eu apontei o dedo na cara de todas elas, me esquecendo do preceito básico que diz que, a cada vez que a gente aponta um dedo para alguém, outros três estão apontados na nossa direção. E eu enchi a boca para falar delas, reproduzindo aquele discurso de que “mulher que se preze faz isso, mulher vadia faz aquilo”. E se você, ainda hoje, é um(a) machistinha como eu já fui, posso dizer que não concordo com uma palavra que você diz e que vou fazer o possível para convencê-lo(a) do quão estúpido esse patriarcalismo todo é, mas que entendo o seu lado.

    Você provavelmente veio de uma família cristã, em que os homens trabalhavam e as mulheres cuidavam da casa. E você provavelmente ouviu a sua avó dizer: meninas que beijam muitos meninos ficam conhecidas como vassourinhas. E seu avô, muito provavelmente, concedeu ao seu tio a liberdade suficiente para ser um garanhão, e à sua mãe a repressão necessária para que ela não se tornasse uma ~mulher falada~. E ela, por sua vez, tinha medo de desacatar à autoridade de um homem. E muito provavelmente, se casou com o primeiro cara que beijou na boca e mediu suas qualidades por atributos como “puxar a cadeira para eu sentar” e “pagar toda a conta do restaurante”.

    Mas, olha, hoje eu vim aqui contar pra vocês que é possível sair dessa lógica opressora do machismo. Com boas leituras, bons filmes e uma boa educação que comece por não dividir crianças entre filas de meninos e de meninas. E não presentear meninas com kits de panelinhas e bonequinhas que fazem cocô na fralda. Não é tudo, mas é um bom começo. E, antes de qualquer coisa, vim agradecer às vadias da minha vida. Obrigada, vizinha da casa de portão amarelo. Obrigada, Janaína. Obrigada, Laura. Obrigada, Leila Diniz. Obrigada, Cássia Eller. Obrigada por me mostrarem que, na verdade, vocês só faziam tudo o que qualquer ser humano faz. Obrigada por me fazerem entender que sexo só é crime se não for consentido. E obrigada, acima de tudo, por me ensinarem que caráter nunca foi, não é e jamais será proporcionalmente inverso ao comprimento das nossas saias. E que ser comportadinha para ganhar brinquedo do Papai Noel não é necessariamente algo positivo – já que não há relação lógica ou óbvia entre ser comportada e ser uma boa pessoa. Como já dizia sabiamente Marilyn Monroe, vadia de primeiro escalão, “mulheres comportadas raramente fazem história”. E eu quero fazer.

    *Nomes fictícios


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