Era estranho como você me via sempre com os olhos meio embaçados, quase cegos de tanta indiferença. Era emocionalmente desgastante as esperas quase torrenciais pelo toque carinhoso ao dividir o travesseiro que, aliás, estava cada vez mais distante do nosso sobreposto habitual. Era angustiante sentir aquele cheiro incomum na gola da camisa amarrotada e jogada no cesto de roupa suja, misturada a todas as sobras do nosso relacionamento varridas para debaixo do tapete. Pior ainda era negligenciar a saudade de um tempo em que os valores da nossa parceria eram maiores do que qualquer descontentamento físico. Era absurdamente devastadora a forma com que você evitava meus olhares na mesa de jantar e negava todo o distanciamento dos nossos caminhos que de tão perdidos apenas se cruzavam na esquina do quarto onde eu escondia toda a minha dor. Era revoltante sentir-se traída. Era.
Acho que a pior parte da traição, se é que podemos pontuar apenas um pedaço, é a quebra total e irrevogável de um laço que demora anos para ser fundamentado: a confiança. A omissão, o engano, o descaso vindo de pessoas que são tão caras na nossa vida, provocam mudanças internas muitas vezes irretratáveis. O pedaço de caminho deixado para trás nunca é o mesmo se percorrido de novo e o fim na maioria das vezes é inevitável. Renunciar a planos, pessoas, momentos, travessias que fazem parte da nossa essência tempo suficiente para se tornarem indispensáveis é uma das coisas mais dolorosas de se fazer. Dói porque significa abrir-se para uma realidade completamente nova que a gente muitas vezes não está preparada para encarar. Machuca porque ter nossa autoestima abalada, nosso merecimento questionado e nossa vivência contestada por um deslize do outro que era presenteado diariamente com reciprocidade enche de culpa uma rotina que não merecia nada mais que respeito.
O fato é que aconteceu e infelizmente não dá para voltar atrás no tempo. A vida não pára pra gente recolher os destroços das nossas tormentas e restabelecer o equilíbrio depois do furacão. O caminho é constante, direto e cheio de curvas. Não adianta remoer e cultivar uma dor por meses a fio por simples medo de dar um passo adiante. Traição parece o fim do mundo, mas não é. Por um tempo parece que a gente fica mesmo sem chão, sem alicerce, sem uma referência emocional legítima em que se fundamentar. Alimenta o martírio e repassa mentalmente todos os detalhes, conversas, o caminho percorrido até ali em busca de uma resposta ou sinal que pudesse justificar o comportamento improcedente, quando na verdade tudo o que se busca depois de uma infidelidade é a destituição de uma culpa involuntária. É essencial paz de espírito e tranquilidade para abraçar a decepção, deixar doer o que tiver que doer e finalmente seguir em frente sem pesos na consciência ou cobranças injustas acerca do real papel de cada protagonista no enredo desta história.
O “tique-taque” do relógio é um poderoso remédio para quase todos os males dessa vida. Recomeçar a sentir, a caminhar com os pés solitários, a amar novamente dá medo, um friozinho na barriga que chega a acorrentar a autoestima e a força de vontade no passado bloqueando o processo de transição. Mas nada melhor que dois pés adiante, buscando uma nova travessia, novos valores, novas expectativas de respeito do que quatro pés atrás segurando um apego que não merece mais fazer parte do nosso caminho. Felizmente, não existe ninguém igual a ninguém no mundo. Não é porque uma pessoa agiu de forma incoerente com você que o resto do universo vá agir da mesma forma. Quando um relacionamento termina, principalmente por substituição de valores, a renovação mental e emocional acontece dentro e do lado de fora do nosso corpo presente. Recomeço. Libertar-se de paradigmas é essencial para o amadurecimento afetivo desse sentimento que perdeu morada na existência do outro e também para ser forte o bastante de se permitir uma nova chance quando a hora chegar. Literalmente sambar conforme a música: levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.
Ser traído dói demais, mas pior do que ser vítima da desconsideração do outro é consentir que esse episódio menospreze toda a sua visão de amor e relacionamentos. Parcerias existem sim e são extremamente confortáveis para quem sabe o que quer. Para quem não sabe, as portas e janelas estão sempre abertas, basta não entrar ou então, ter coragem e a decência de sair. Quando parei de ser cúmplice de uma dor que não merecia ter morada na minha trajetória, entendi que o descompasso não era meu, mas sim do outro que era refém de um milhão de expectativas surreais sobre a vida e relacionamentos. Passarinho só faz ninho onde encontra abrigo de alma. Se a árvore deixa de fornecer o aconchego de que precisa ele abandona aquele caminho e procura outro mais condizente com suas urgências. Respeitando sua essência, suas necessidades e seu antigo lar que por tanto tempo serviu de colo, conforto e paz. Isso não tem nada a ver com liberdade, mas sim com livre-arbítrio. Demora, mas não existem limites quando a gente redescobre que tem asas.