Você nasceu num dia meio cinzento. E como todo recém-nascido, era tão feia que parecia reboco de parede feito às pressas e com argamassa barata. Só dava pra saber que você era menina porque tinha uma ~esfihinha~ no meio das pernas – nomenclatura que papai e mamãe, phDs em educação sexual, deram para a sua vagina. Até o momento em que sua mãe vestiu-lhe com um aprazível macacãozinho rosa, levantou-a em direção ao céu – mais ou menos como Rafiki fez com o pequeno Simba – e bradou aos sete ventos: essa vai ser a bailarina que a mamãe não foi. Pronto, criou-se um monstro.
E por mais que o seu negócio fosse correr na rua e voltar para casa com o joelho estourado e com medo do Merthiolate – que naquela época ainda ardia pra cacete –, de segunda a sexta, depois do almoço, mamãe vestia-lhe como manda o figurino, com saiote de tule, colan, meia calça branca e sapatilha de cetim com ponteira de gesso, enfiava-lhe no banco traseiro do carro e dirigia para a aula de ballet. Secretamente, ela assistia você fazendo plié-elevé e, mesmo notando que você não tinha jeito pra coisa, obrigou-a a frequentar a academia de dança diariamente até os 15 anos. Depois, virou três vezes por semana.
Porque aí era época de começar se preocupar com o vestibular. E toma tempo, sabe como é… Papai, autoridade máxima do reino da margarina, determinou que você seria o médico que ele nunca foi. Te levou a congressos em que você ouvia um monte de gente dizer um monte de coisa que de nada te interessava, colocou você em contato com o doutor Ivo, aquele médico renomadíssimo e craque em neurocirurgia, e matriculou você no cursinho mais caro de São Paulo, pra garantir que não haveria erro – afinal, tanto investimento só poderia resultar em sucesso.
E como você já estava na idade de se interessar por meninos, titia fez questão de te apresentar para o Romeu, filho da Rita, aquela grande (e rica) amiga dela. O Romeu era uma graça, tinha olhos azuis, ia prestar Engenharia, estava começando a dirigir o Audi que seu pai lhe dera no aniversário de dezoito anos e era fluente em quatro idiomas. Um partidão, como diriam as avós.
Também já estava na época de você se preocupar mais com a aparência. Então a sua prima, aquela que só vestia a marca do jacarezinho, levou-a para um incrível banho de loja no JK Iguatemi. Pagou um corte com escova e luzes no Jacques Janine e lhe recomendou aquela academia high society de São Paulo, pra você deixar a bunda bem durinha e o abdômen bem sarado, que aí as recalcadas olham com inveja e os homens olham com tesão.
Mas você não queria a inveja das recalcadas nem o tesão dos homens. Você só queria ser você. E largou o ballet para praticar lutas marciais. Desistiu da faculdade de Medicina para estudar Artes Cênicas. Percebeu que um Romeu era bom, mas que uma Julieta era melhor ainda. Trocou as roupas que ~valorizavam seu corpo~ por um moletom que a fazia se sentir bem. E muito mais bonita do que nunca. Seus pais? Hoje te chamam de ingrata. Sua tia? Hoje te chama de sapatona. Sua prima? Hoje te chama de desleixada. Você? Hoje se chama de enfim, feliz.
Desculpa, mundo, se eu não cumpri as suas expectativas. Minha prioridade é cumprir as minhas.