• Sua foto no meu porta-retrato
  • Sua foto no meu porta-retrato


    Ela estava sentada no tapete fofo da sala, com uma taça de vinho na mão direita e um porta-retratos na esquerda. Aquele era o último de tantos que ela havia desencaixotado naquele dia. Estava cansada, o corpo doía devido ao esforço da mudança recente. Trocar de apartamento era uma tarefa árdua, tinha de concordar. Quase tudo estava organizado e faltava alocar apenas aquele porta retratos, saído daquela que era a última caixa.

    Logo ele chegaria, com o sorriso bonito, os comentários sobre como o mundo andava apressado, ou que ninguém respeitava mais uma quarta a noite de futebol na TV. Era sempre assim, há oito meses. Quartas a noite ele saía para buscar pizza, reclamava das filas, abria uma cerveja e assistia futebol, gritando feito menino no estádio. E ela gostava dessa pequena rotina na vida maluca deles.

    Mas nessa noite, depois de dias dormindo numa total bagunça, o apartamento estaria arrumado e quando ele viesse, as caixas estariam todas vazias. Ela estaria vazia, pronta para se preencher de coisas boas e de coisas novas. Seu coração cheirava a tinta fresca e as paredes haviam sido redecoradas. Ainda com o porta retratos na mão, estava decidindo o que fazer com ele. Não havia foto de viagem, de família ou de um lar. Um porta-retratos sem retrato não significa nada para ninguém, pensou, é frio, solitário e atesta a dureza da vida.

    Nesse instante a porta da sala abriu, ele chegou com a embalagem vermelha da pizzaria italiana da esquina, reclamou do frio, das filas, a beijou e ligou a tv. Fla-Flu em campo, ele fez aquela cara de soldado indo para a guerra e sentou no sofá. Os cabelos negros ainda estavam úmidos, chovia muito em agosto e ela estendeu uma toalha para que ele secasse. As mãos se tocaram, os olhares cruzaram. Ele sorriu, aquele sorriso que a tirava do chão e do prumo.

    Apesar do juiz apontando saída de bola, na televisão ainda mal sintonizada, ele percebeu a última caixa e o porta retratos na mão dela. “É só isso que falta?”, perguntou. E com a beleza sutil da intimidade, sabia o que ela pensava. Andou até sua mochila, num canto da sala, abriu uma agenda e entregou uma foto deles dois para ela.

    Era uma foto bonita de um dia de sol, no meio de um mercado de rua, ela com vestido leve, ele de all-star. O dia em que haviam se conhecido. Tinham sido apresentados por amigos, comeram cachorro quente e ouviram musica num boteco do calçadão, quando a noite caiu. Deram as mãos para ir embora e se beijaram no meio da estação, enquanto um cara com violão tocava Eric Clapton ao fundo. Ela sorriu com a lembrança e segurou uma lágrima no canto da alma.

    Mesmo em tempos de álbuns virtuais ele tinha uma foto deles revelada, no meio da agenda, eternizando um momento tão bonito. Ainda existia fotografia para aquele porta-retratos. Ainda existia amor para ela. A foto foi para a estante de livros e eles para o sofá. O jogo rolando, o braço dele ao redor dela e a vida seguindo à luz do abajur. Deitou bem perto, no ombro dele, tranquila. Ele beijou ela no topo da cabeça, um beijo meio testa meio cabelo, ela sorriu e teria adormecido, não fosse o grito de gol e o salto ágil que ele deu para comemorar. Fluminense 1 a zero…

    loui


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