Dizem que todos os seres humanos nascem livres e iguais. Não é preciso muito para refutar a ideia de igualdade. É só pegar as estatísticas e notar o quanto negros estão mais sujeitos a morrer como vítimas de violência. O quanto mulheres estão mais sujeitas a não ascender profissionalmente. Ou o quanto homossexuais estão mais privados de seus direitos civis. Agora, com relação à liberdade, o buraco é mais embaixo. Porque a gente sempre teve a convicção de que nasceu livre e de que – com sorte e sem nenhum delito na ficha de antecedentes criminais – vamos morrer também livres, fazendo o que bem entendermos com a nossa modesta vidinha. Não é mesmo?
Sinto lhe decepcionar, amigo, mas não. Nunca foi. Pode ser doloroso, mas sejamos sinceros com nós mesmos pelo menos uma vez na vida: vivemos cheios de amarras. Somos mais talentosos em dar nós do que em cultivar laços. Temos mais motivos para reclamar do que para agradecer. Preferimos errar por não tentar, sal de menos a sal demais, nos arrepender daquilo que não fizemos. Se alguém chegasse neste exato momento e nos convidasse a largar tudo e embarcar numa incursão pela Chapada Diamantina, nós arranjaríamos mil motivos para ficar. Ai, sabe o que é? Não posso largar meu emprego assim, de um dia pro outro. Tenho dívidas a pagar. Tenho que cuidar dos meus pais, que já estão velhinhos. Tenho que ficar com o meu namorado, e ele jamais aceitaria ir. Tenho que estudar pro concurso do Ministério Público Federal. Tenho que alimentar meu gato, tenho que regar as plantas do jardim, tenho que terminar meu pacote de depilação a laser.
Tenho que. Sempre tenho que. E o que é o “ter que”, senão uma obrigação, uma prisão, uma dívida com a nossa própria liberdade? Porque se fossemos realmente livres, nada nos impediria de ir e vir quando bem entendêssemos – de segunda a quarta na praia, de quinta a sábado no campo e o domingo inteiro na cama. De fazer o que tivéssemos vontade, no momento em que tivéssemos vontade – pedir demissão, raspar as sobrancelhas, comer um pote inteiro de sorvete numa só sentada, transar com o vizinho, transar com a mãe do vizinho. De tomar as nossas decisões única e exclusivamente por nós mesmos – sem ter que pensar no namorado ciumento, nos pais controladores, nos amigos intrometidos, na sociedade vaidosa. Mas não é assim. E não é assim porque nosso maior talento não é escrever, não é cantar, não é desenhar, não é dançar, não é jogar futebol, não é costurar, não é cozinhar, não é organizar armário, não é fazer contar, não é mexer no Excel, não é dar palestra. Nosso maior talento é construir as nossas próprias prisões, nos trancafiar, jogar a chave fora.
E construir, lá dentro, a mais plena convicção de que somos livres. De que botamos um saltão e um tomara-que-caia para ir à balada porque nos sentimos bem assim – e não porque estamos tentando nos enquadrar num padrão estético. De que nos privamos de comer batatas-fritas até mesmo aos finais de semana porque nos preocupamos com a nossa saúde – e não porque a indústria da beleza condena qualquer gordurinha a mais nos nossos corpos. De que trabalhamos de segunda a segunda porque não gostamos de estar ociosos – e não porque o mercado nos incita a ser prósperos para cumprir o imperativo de sucesso. De que nos relacionamos única e exclusivamente com uma pessoa porque queremos – e não porque a ficção plantou nas nossas cabeças um ideal de amor romântico que dissocia sentimento de desejo. É assim que erguemos as muralhas da nossa prisão.
Se há problema nisso? Sinceramente, não sei. Tudo o que sei é que, salvo raras exceções – e eu definitivamente não sou uma delas –, todo ser humano é preso. Não por essência. Talvez por necessidade. E certamente por status. Como sabiamente disse, um dia, Elke Maravilha: “livre ninguém é. A gente só tem a liberdade de escolher a prisão em que a gente quer ficar”.