Nada.
Ela entra pela porta da frente, sem convite. Quando se vê, está plantada na sua sala, vestida com suas roupas, e em pouco tempo te parece tão familiar que é difícil pedir que se retire.
Então você a observa, cínica, e ela cresce diante de seus olhos como uma massa fermentando, mesmo quando você se recusa a alimentá-la. A saudade se retroalimenta, é autossuficiente como você mesmo gostaria de ser.
Ela não se importa com o fato de você ser um péssimo anfitrião: se não a convida para entrar, se não oferece um café, se tenta – inutilmente – ignorá-la. De alguma forma que até hoje não se pôde explicar, a saudade sabe que você não pode com ela.
Você também sabe, então permite que ela vá ficando e torce para que o estrago não seja grande. Ela se espalha pelos cômodos, se bate pelas paredes, deita-se na sua cama, e antes que você seja capaz de se dar conta, a saudade está por todos os cantos.
Sua presença é sufocante.
A saudade tem um jeito de te olhar nos olhos, aquele jeito desconcertante que não te deixa esconder nada.
Neste momento preciso, em que a vulnerabilidade lhe salta pelos olhos, você pede para que ela se retire, mas ela encosta, em silêncio, nos seus ombros. Você é capaz de sentir o seu cheiro, e você sabe que precisa fazer algo a respeito, porque você não pretende chorar. A saudade tenta te convencer e chorar porque, parece, só então ela poderá te abraçar sem permissão.
Diante de sua presença adstringente e inevitável, você a convida para jogar cartas com o objetivo de manter ao menos alguma distância. Você não sabe, mas é um jogo perigoso. A saudade joga baixo, não se importa com os ditames da moralidade, e, sobretudo, a saudade já viu as suas cartas. Você não pode esconder dela o seu jogo, ela é como uma bruxa dada à adivinhação.
Você não tem uma carta na manga. Acaso tivesse, talvez ela não te vencesse tão impiedosamente. Você poderia usar a sua carta e a saudade, vencida, teria que pular a janela e despedaçar-se no chão do terceiro andar, mas você nunca tem uma carta na manga, a saudade já viu o seu jogo, já grudou nas suas paredes, já espalhou o seu cheiro agridoce por cada milímetro da sua casa.
Então você perde o jogo. De alguma estranha maneira, você sabia que perderia. E ela sabia que venceria. Então você a abraça, rendido, com a quietude medonha de quem sabe que não há remédio.
Você sabe que a filha da puta sem escrúpulos conseguiu de você o que queria. Adormecer em seus braços ainda lhe parece menos terrível do que ter que conviver com sua presença silenciosa, porque ela está sempre escondida atrás de uma porta qualquer, te espiando com dois imensos olhos e uma cara de juízo final.
A saudade sabe que venceu, por ora, e você tenta se enganar dizendo a si mesmo diante do espelho, com ela pendurada em seus ombros, que um novo dia chegará e ela partirá, quem sabe, para a sala de alguém que acabou de perder a mãe, para qualquer quarto de homem abandonado, para os ombros de qualquer criança que quer de volta o seu brinquedo predileto, você pensa, e você está enganado.
A saudade é onipresente.
No dia seguinte, quando você abrir os seus olhos desenganados, ela estará deitada ao seu lado, e antes de despertar completamente você sentirá as suas mãos sujas apertarem o seu peito, e você berrará de dor – em silêncio – porque, você sabe, a saudade é surda.
De nada adianta gritar.