• Ensaio Sobre a Cegueira –  Um Basta Para Quem Não Sabe Olhar
  • Ensaio Sobre a Cegueira –


    Um Basta Para Quem Não Sabe Olhar


    Depois da pílula anticoncepcional, ficar deve ter sido a grande invenção do século XX, ao menos em termos de relacionamentos. Evoluímos do papai que escolhia com quem sua filha ia  casar para o namoro no portão com a irmã ao lado, para poder provar o quanto quiser. Maravilha! Mas não sei bem, às vezes me pego pensando que no meio disso perdemos algo, certa emoção que tinha o namorico do portão, envolvente, saboreado.

    Na geração fast food que devora tudo que passa rápido e vorazmente, variedade é a ordem. Provamos e descartamos as pessoas de nossas vidas com rapidez impressionante, mal deu tempo de sentir o gosto e… já foi,  próximo!

    Você viu bundas e braços fortes, boca carnuda; pena que esqueceu, também, de olhar. Perdeu o sorrisinho de lado safado, a mexida no cabelo meio sem graça. Nem perceberam que ambos adoram falar sobre nuvens, que conheceram Cuba, que adoram o som do vento e cerveja irlandesa; não olharam, apenas se viram, beijos e mãos imediatas e desatentas, quase sem interesse.

    Por isso, proponho um manifesto pelo fim de bocas que não te olham, de mãos que te afagam e não te sentem, de pegadas que não se doam, de ficadas egoístas.

    Para ver basta abrir os olhos – coloque os óculos se precisar focar melhor; mas, apenas eles, não serão suficientes para se olhar, é preciso sair da bolha, prestar atenção, perguntar, observar e claro se doar, ao menos um pouquinho. O olhar é observador, interessado, atento às nuances, sente o outro enquanto percebe a si. Ele não julga, apenas contempla.

    Treinar o olhar é abrir-se para perceber o que acontece a seu redor, novos ângulos, enxergar o avesso, sair do óbvio, coisa de fotógrafos e desenhistas. Pena que, até mesmo eles, muitas vezes recuam na hora de olhar para as pessoas fora de suas lentes e retratos.

    Portanto, apure seu olhar curioso, criativo e destemido em prol de relações mais intensas e verdadeiras. Olhe a pessoa que acabou de conhecer e se deixe olhar. Não tenha medo, quebre a passividade do ver, nada de mal pode lhe acontecer. Muito pelo contrário, no máximo você vai descobrir alguém interessante, reconhecer afinidades, dar risadas e bons beijos.

    Talvez até descubram que a química não rolou, mas aí também descobrirão que não é só isso que importa. Que o olhar é descomprometido, livre e nasce apenas da vontade de estar presente e saborear o novo. E que muitas vezes onde não brota um amor, pode nascer uma boa amizade, ou apenas uma série de bons momentos que, no final, é basicamente o que levamos da vida.

    Pra terminar, deixo um trecho de Rubem Alves que fala muito bem desse assunto: “A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam… Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que veem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.”


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