Bruna G., 23 anos, ex-usuária de aparelho, ex-xavequeira de MSN, ex-rata de Internet Explorer. Ex-cover performática de Victoria Beckham das Spice Girls, ex-leitora semanal de Capricho, ex-consumidora das sandalinhas da Xuxa que mudavam de cor ao sol. Ex-telespectadora de Chiquititas, ex-colecionadora de pó de borracha, ex-dançarina da Boquinha da Garrafa. Ex-frequentadora de matinês, ex-usuária de calça bag e ex-namorada, com muito prazer.
É provável que vocês não saibam o que vou lhes dizer agora, porque é algo que mamãe não ensinou em casa, a tia não ensinou na escola, a TV Cultura não ensinou no Castelo Rá-Tim-Bum e muito menos a catequista ensinou na primeira comunhão. Mas renegar o próprio passado é o oitavo e mais grave pecado capital. Luxúria, gula e avareza são fichinhas perto de renegar o próprio passado – afinal, qual o problema em dar uma transadinha, comer além da conta e economizar com itens supérfluos? Longe desta nobre pagã querer incentivá-los a pecar, mas eu ousaria dizer até que são boas práticas para uma vida mais divertida, feliz e tesônica.
Agora renegar o próprio passado é cometer um mezzo-suicídio. É descartar a própria constituição, é dizer que o castigo de um mês sem jogar videogame de nada adiantou. É ignorar a beleza rude das cicatrizes nos joelhos, que um dia foram solenemente rasgados pelo asfalto naquele tombo de bicicleta. É desconsiderar que os treinos com a metade da laranja o ajudaram a ter um desempenho menos lastimável no tão fatídico primeiro beijo. É recusar a ideia de que ralar na boquinha da garrafa foi a primeira e prematura lição sobre como cavalgar num pau duro. É matar os antecedentes, é envenenar a mãe que o carregou no ventre durante nove sofridos meses, é torturar com requintes de crueldade o pai que um dia já trouxe comida a casa. E isso, meus caros, não é do meu feitio.
Às vezes me pego pensando no que seria da minha vida hoje se, aos 14 anos, eu não tivesse sido a menina desengonçada de aparelho, óculos, nariz grande, peitos pequenos e sobrancelhas mal desenhadas. E chego à conclusão de que eu não teria conquistado nem metade das coisas que conquistei até hoje. Ser patinho feio é aprendizado de vida. Enquanto os bonitos são agradáveis por apenas existir, os desprovidos de beleza precisam se fazer socialmente aceitáveis de alguma forma. E aí, o que é que a gente faz? A gente mete a cara nos livros – não tenho super peitos, mas sei todas as fases da meiose. Ou se envolve com alguma arte ou esporte – meu sorriso é metálico, mas canto e toco violão nas rodinhas. Ou apenas se esforça para ser mais agradável – já que aos olhos eu não agrado, posso tentar chegar mais perto do coração. É por isso, meus caros, que, em grande parte das vezes, a feiosinha aos 15 anos é a menina interessante aos 25. E a bonitinha do ensino fundamental continua sendo só mais uma ‘bonitinha, porém ordinária’ pelo resto da vida. Ou até que o tempo a degrade…
Constituintes em um ser humano também são os ex-relacionamentos. Juro que já tentei de absolutamente todas as maneiras, mas ainda não entendo o que motiva ex-namorados a matarem simbolicamente uns aos outros, com exclusões, bloqueios e unfollows em Facebooks e Twitters da vida; com combustões de cartinhas e fotografias outrora apaixonadas; com o descarte de presentes que já equivaleram a boa parte dos suados décimos terceiros salários. Dia desses, stalkeando a vida de uma amiga que fugiu de casa para morar com o namorado e que jurava que era amor para a vida inteira, tive uma desagradável surpresa ao descobrir que os dois haviam terminado e – mais do que isso – exterminado qualquer rastro de convivência nas redes sociais, como se um nunca tivesse significado nada para o outro. Como se ela não tivesse aprimorado a arte do boquete com ele. E como se ele não tivesse aprendido com ela que preliminares não se resumem a meia dúzia de apertões nos peitos e a uma dezena de lambidelas preguiçosas no clitóris.
Eu sou uma cafona e saudosista assumida. Guardo fotografia de ex-namorado em caixinha de coração, lavo à mão e com sabão para peças finas as roupas que ele me deu, uso perfume que ganhei de presente para sair com outros bofes. Confesso que, para completar o álbum das Chiquititas, apenas me faltou a figurinha de número 107 e que tenho em CD a trilha sonora da novela. Revelo que já fiz tererê nos cabelos e que interpretei a Murta Que Geme na peça do Harry Potter na escola. Sim, eu tenho um passado. Claro, parte dele me condena. E eu? Ah, eu assumo a culpa e cumpro a sentença com todo o prazer. Afinal, quem me garante que, no futuro, o meu presente também não me condenará?