A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Seja como for, é fato consumado que toda manifestação artística é um retrato de nós mesmos, um espelho fidedigno da sociedade.
Vez ou outra a gente cruza com um contador de histórias feito o Forrest Gump, ou com caçadores de caos como o Coringa – tipo aquela vizinha fofoqueira que não tem nenhum objetivo de vida, a não ser ver o circo pegar fogo. Ou mocinhas ingênuas, sonhadoras e com belos sotaques como a Lisbela. De vez em quando a gente tem de lidar com o sarcasmo do Capitão Jack Sparrow no escritório, na biblioteca ou na academia. Cada personagem é a reprodução – não exata, evidentemente – do zoológico humano que é a nossa existência.
Exatamente por isso, a cartunista Alison Bechdel desenvolveu o teste Bechdel, que se propõe a avaliar a representação feminina no cinema. Esse teste – que já foi realizado na maioria dos filmes mais famosos- tem como requisitos três perguntas simples: 1. O filme tem, pelo menos, duas personagens femininas?(que tenham um nome). 2. Essas personagens conversam entre si? 3. Sobre um assunto que NÃO seja um homem?
Não por acaso, a maioria dos filmes submetidos ao teste foram reprovados, e é fácil imaginar o porquê: é só nos lembrarmos de quantos filmes já vimos que sejam protagonizados por uma mulher, e cuja trama não gire em torno de um homem.
O estereótipo hollywoodiano é – quase sempre –obedecido: a mulher jovem, branca e magra, que corresponde a um padrão de beleza e comportamento com pouca ou nenhuma variação. Essas personagens estereotipadas giram em torno de personagens masculinos – igualmente estereotipados – que assumem o papel de heróis, provedores da casa e salvadores do mundo. A “fragilidade” feminina é sempre reproduzida em personagens que precisam ser salvas, como a Mary Jane, em “O Homem Aranha” (2002), ou a absoluta totalidade das princesas dos clássicos Disney.
Mesmo quando a representação foge a esse padrão, e a personagem feminina é apresentada em uma maneira mais moderna e independente – como a Emma (Natalie Portman), em “Sexo sem Compromisso” – a ideia de que toda mulher precisa de um homem que a complete é reforçada: Mesmo que seja linda, inteligente e viajada, ela precisa de um grande amor pra ter o seu final feliz.
É claro que existem as exceções que confirmam a regra, como o surpreendente filme francês “O Fabuloso Destino de Amèlie Poulan”, mas nos filmes que fazem parte do nosso cotidiano – aqueles exibidos nos cinemas, nos canais de filmes e na sessão da tarde – trazem a mulher coadjuvante, secundária e sexualizada de uma maneira visivelmente apelativa, como a Palmer Dodge, interpretada por Brooklyn Decker em “Esposa de Mentirinha”. Você se lembra do filme, mas não da personagem? Então, não é por acaso. Ela é a loira que aparece de biquíni fio dental em quase todas as cenas e tem menos que vinte falas.
Pode ser difícil digerir todas essas afirmações partindo de uma feminista que já sofreu terríveis linchamentos virtuais, mas os dados não mentem: De todos os filmes submetidos ao teste – e, acredite, foram muitos – apenas 30.8% das personagens femininas têm direito à fala. O resto é objeto de decoração – de preferência com pouca roupa e muita maquiagem. Aliás, 28.8% das personagens femininas usaram roupas com apelo sexual, e quase metade delas ficaram nuas, contra apenas 7% dos personagens masculinos. Não é opinião: são fatos.
E engana-se quem pensa que isso está no passado – só porque já vemos mulheres transando nas telonas. A atriz hollywoodiana Evan Rachel Wood que o diga: ela teve censurada uma cena em que aparece recebendo sexo oral de um homem, no filme “The Necessary Death Of Charlie Countryman”, ainda inédito no Brasil. Agora, pensemos bem: Quantas cenas de sexo oral masculino já vimos no cinema? O exemplo mais recente é “Nymphomaniac”, que mostra um boquete sem cerimônias.
Cenas de estupro, violência e machismo escrachado são vistas todos os dias, mas o prazer feminino segue sendo negligenciado como se não pudesse existir. O cinema – e os telespectadores – têm aceitado com mais facilidade a representação da mulher violentada do que da mulher que sente prazer, e isso não pode ser ignorado. É alarmante.
Embora esse tema pareça menor e sem muita importância – ao menos diante dos outros problemas incrivelmente maiores causados pelo machismo, como a violência doméstica e o estupro – nenhuma manifestação artística se constrói sozinha: Todas elas são construídas e alimentadas por nós, pelos nossos valores e preferências. O machismo ainda presente no cinema, na literatura, na televisão, na música, no humor – é o machismo presente em nós que lemos, assistimos e mantemos viva uma arte que nos segrega e nos diminui. Infelizmente, não se trata apenas de ficção: esse é o drama da vida real.