Tia, tudo bom por aí? Por aqui está mais ou menos, sendo bem sincera. Sabe o que é? O Natal está chegando e, graças a você, principalmente, eu já estou sofrendo. Já até pensei em forçar uma conjuntivite pra não ir à casa da vó. Ou uma Zika, que tá mais na moda.
Estou sofrendo porque eu sei que você, como sempre, levará arroz com passas. E que mesmo depois do meu claro “Não quero arroz, obrigada!”, fazendo-se de surda, colocará uma puta colherada em meu prato. Ou duas, pro meu desespero. Passas só combinam com panetone, tia! Passas fodem o arroz, tia! Uma pesquisa realizada pela Universidade de Massachusetts concluiu que comer uva-passa com arroz acelera a chegada menopausa e queda das tetas, juro! É isso que você quer? Se for, soca mais uva-passa no arroz, que tá pouco. E se acha que sou a única que não gosta de passas no arroz, está enganada: um dia, quando você estava cochilando no sofá da sala, eu flagrei o tio Roberto jogando todo o arroz da travessa no potinho de ração do Bob, que saiu correndo na hora, como se tivesse visto um espírito.
Mas as passas não são a pior parte do Natal, pode apostar. Pois eu posso tirá-las, como já fiz várias vezes, sorrateiramente. Sabe a pior parte? Não, não é a piadinha do pavê (“É pavê ou pra comer?”) que o vô certamente fará, mais uma vez, como se fosse inédita e engraçada. Nem o esforço que terei de fazer para não mandar uma cara de “Que bosta, vou ter que trocar” quando abrir o presente de amigo secreto. Quer saber a pior parte? As perguntas que você me faz, todos os anos! As mesmas perguntas idiotas! Quando estou solteira, você lança: “E os namoradinhos, cadê?“ Quando estou namorando, você manda: “Quando é que vão casar, hein?” E, se um dia aparecer casada – coisa que não pretendo! -, perguntará a mesmíssima coisa que pergunta à Livinha desde o primeiro Natal que ela passou de aliança na mão esquerda: “E os filhos, quando terá?”.
Quem lhe falou que estar solteira é ruim, hein? Porque sempre que estou sem ninguém, você me olha com pena, como se eu tivesse com o mindinho preso a uma escada rolante. Quem lhe disse que casar é o passo seguinte e – imprescindível – ao namoro? Não posso simplesmente namorar, para sempre? E quem lhe contou que ter filhos é uma necessidade àqueles que estão casados? Pois saiba eu prefiro gastar meu dinheiro com viagens e coisas que não sujam fraldas! Preciso desenhar, tia? Ou deu pra entender?
Apesar de achá-lo horrível, eu não me incomodo, nem um pouco, com seu corte de cabelo anos setenta. Nem com aquele blazer de ombreira que você usa, quase sempre. Afinal, apesar de serem antiquados, não impactam a minha vida. Porém, não posso dizer o mesmo das suas perguntas e pensamentos fora de moda, tia. Pois elas, todos os anos, fazem-me lembrar de que ainda estamos muito atrasados, saca? E que ideias empoeiradas – e que me causam verdadeiras reações alérgicas! – ainda persistem; até mesmo nas melhores famílias.
Que tal um Natal diferente este ano, hein? Que tal um Natal sem “Coitada da faluna, descobriu que o filho é gay!”? Que tal um Natal em que mostrar os velhos preconceitos seja algo mil vezes mais vergonhoso do que expor a tatuagem nova? Que tal um Natal no qual o neto que passou em medicina não seja mais paparicado do que aquele que quer ser músico? Que tal um Natal em que o casamento não seja visto como sinônimo de sucesso e a solteirice como exemplo de fracasso? Que tal um Natal em que o namorado negro da prima branca não seja recebido com olhos arregalados? Que tal um Natal em que os homens também ajudem a lavar as louças e a tirar os pratos da mesa? Pode ser? Você me ajuda?
Ou, mais uma vez, ficarei o tempo todo jogando videogame com as crianças e fazendo o possível para distraí-las, evitando que prestem atenção nos muitos preconceitos que vocês, adultos, expõe todos os anos em forma de piada ilusoriamente inofensiva e pergunta desnecessariamente repetida. Afinal, as crianças são o futuro, não são? E não quero que cresçam pensando que só serão bem-sucedidas quando se casarem com alguém do sexo oposto, tiverem filhos de olhos azuis e conquistarem um diploma de medicina, o que é uma tremenda idiotice.
Até o Natal, dia em que comentários referentes ao novo Star Wars e arroz sem a presença do lado negro da força, surpreendentemente, vão me impedir de achar que estou num déjà vu, condenado a um episódio repetido.