• Amo você, mesmo não amando tudo em você
  • Amo você, mesmo não amando tudo em você


    Quando acorda antes do fim do sono, graças ao despertador ou à britadeira de alguma obra, você é mau humor em doses cavalares, fábrica de coices e caretas. E nem adianta tentar exorcizar seus demônios-da-Tasmânia matinais, eu compreendi depois de muitas tentativas frustradas de “embonzinhamento”, olhares amedrontadores e tabefes verbais. O melhor a fazer é colar na padaria da esquina, pedir um pingado e um pão na chapa, abrir o jornal do dia e só me reaproximar de você depois das onze (hora em que costuma voltar a ser suportável, apaixonante e inofensiva).

    E nos dias em que fica puta comigo, em vez de me dizer o motivo do bico e me poupar das extenuantes reconstituições mentais que faço para tentar descobrir onde é que pisei na bola, você tem o irritante hábito de me dar respostas econômicas ao quadrado, propositalmente construídas por poucas – e não esclarecedoras – palavras. “O que foi?”, eu pergunto. “Nada”, você diz. “Então por que você está com essa cara?”, indago. “Que cara?”, você responde. “Cara de ‘vou fazer sashimi com as suas bolas’”, afirmo. E a coisa só vai piorando: a cada nova pergunta que lanço, com esperança de lhe convencer a ir direto ao ponto da discórdia, mais monossilábica – e assustadora! – você fica, até que entra no automático e começa a metralhar “tá” pra tudo, o que me faz querer rolar no chão de raiva. “Amor, eu gosto muito de você e acho que não deveríamos perder tempo do nosso precioso domingo brigando. Nossa relação é tão bonita e, sinceramente, sinto que podemos resolver as coisas de maneira mais simples, sem nos desgastar tanto. Não acha?”, falo com tom de voz pacífico, com timbre de bandeira branca. E você diz “Tá”, apenas. Só de lembrar já me dá vontade de dar uma cabeçada no notebook, juro.

    Mas quem disse que seria fácil, não é mesmo? Se até no Big Mac existem picles, por que não haveria algo do tipo socado entre suas gostosuras e molhos especiais? Se eu gostaria que você tivesse o hábito de acordar cantando “Bom dia, amiguinho…”, oferecendo-me massagem nos pés e dizendo que o Clooney fica feião perto de mim? Claro. Também gostaria que mandasse um “Estou magoada porque você ficou de me ligar e dormiu” em vez de “Tá”. Assim como eu sei que você gostaria que eu fosse menos mala e reclamão quando estou com o estômago roncando e mais divertido e dançante em festas de casamento. Eu sei. E sei, também, que tem vontade de me fazer correr sobre peças de lego quando eu espalho minhas roupas pela sua casa e deixo a sua cozinha toda suja depois das minhas aventuras gastronômicas. Ô se sei. Mas já temos experiência suficiente para saber que aqui, no mundo real, não é como na Disneylândia. Ou seja: o “vou me esforçar para fazer nosso love rolar” faz muito mais sentido do que o “nascemos feitos um para o outro”.

    Já passamos da hora de acreditar na existência de príncipes e pessoas que já nascem predestinadas ao encaixe perfeito, aquele que não exige o mínimo esforço, capacidade de ceder e constante mudança de postura para acontecer. Agora – após muito colidirmos contra nossas próprias utopias e desilusões -, felizmente, acreditamos no amor real, de carne e osso, que só se mantém vivo porque está inundado de vontade de contornar as humanas imperfeições e aquilo que não pode controlar; do tipo que não berra “Acabou!” por causa de qualquer quiproquó ou desafinação. Acreditamos no amor que fica evidente – muito mais do que em Dia dos Namorados – quando existe necessidade real de provarmos que estamos dispostos a ceder e a engolir o orgulho para que a relação não afunde em mares de vaidade. Acreditamos no amor que, antes de tudo, é desejo de vencer o que já arruinou o amor (amor?) de muita gente. Acreditamos no amor que não vem pronto ou com bula, e que vai sendo construído, aos poucos, com muita paciência, dedicação e silêncios que barram desrespeitos e xingamentos. Não é nisso que acreditamos? Sei que é.

    Amar é bonito de qualquer maneira. Mas amar com a plena ciência de que pelo amor – e só por ele – somos capazes de derrotar nosso ego e ânsia pela perfeição absoluta é maravilhoso. Tão grande que não cabe neste texto, que foi feito do que não coube em meu coração.

    Amo você, à beça, mesmo não amando tudo em você.

    ass-ricardo


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