• Sobre A Beleza De Olhar Para O Passado  Sem Medo
  • Sobre A Beleza De Olhar Para O Passado


    Sem Medo


    Reza a lenda que falar de passado é sinônimo de má sorte, que machuca a alma, que faz com que nos esqueçamos de viver o presente. Eu, particularmente, sempre discordei disso. Vejo as pessoas nas ruas, tão controladas e certas, sempre olhando para frente com os olhos cerrados, só pensando em futuro, futuro e mais futuro. Enquanto isso, as crianças, corajosas e desafiadoras, não têm medo de andar nos carros olhando pelo vidro de trás. Não se importam com o fato de não ver o que está vindo pela estrada a frente, importam-se apenas com o que ficou pelo caminho e no quão lindo o passado foi. E eu? Eu fico com a pureza da resposta das crianças.

    Abri os olhos e, de repente, eu estava ali como uma delas, com o queixo encostado no banco de trás do carro olhando tudo o que passava. Era tudo muito rápido, meus olhos ainda estavam embaçados e dormentes de sono. Fiz um esforço para enxergar melhor, e então pude começar a ver as paisagens lindas que ficavam para trás e como as listras de sinalização desenhadas do chão formavam uma arte encantadora. As árvores estavam mais charmosas e balançavam suavemente com a força do vento. As casinhas, tão pequeninas e simples, eram ainda mais pequenas por causa da distância e velocidade pelas quais passavam por mim. E era exatamente assim que eu me sentia, parada no mundo por um segundo, enquanto dentro desse segundo tudo passava significativamente rápido por mim.

    Foi quando parei para pensar no quão intenso poderia ser o ato de olhar para trás e resolvi que eu poderia viajar para lugares ainda mais distantes e me desafiar. E se em vez de árvores, gramado e casebres eu pudesse ver na estrada meu primeiro dente de leite que caiu? Quem sabe meus primeiros dias na escola primária, o choro de despedida e a ansiedade de voltar para os meus laços, minha casa. Quem sabe ver meu primeiro amor ou, melhor que isso, minha primeira desilusão amorosa e o momento em que descobri que aquela primeira não seria a única vez que eu seria desiludida na vida.

    Em minutos, não estou mais na estrada, estou onde eu quiser estar no meu passado. Estou onde minha imaginação é capaz de me levar. Estou no beijo de boa noite que não posso mais receber dos meus pais. Estou em um mundo leve e sem preocupações. Estou deitada no chão contando as estrelas de verão. Estou com os cabelos ao vento, pés molhados na água do mar. Estou indo encontrar alguém que nem sei se está mais lá, que nem sei mais o que sente por mim e que também nem sei se gostará de me olhar mais uma vez. Mas estou indo.

    Vou porque isso tudo é só imaginação. Vou porque são apenas lembranças mal escritas – e isso ninguém pode mudar, reescrever ou distorcer por mim. Vou porque além de ser para sempre vivo, esse passado é meu , só meu, e o divido apenas com quem viveu a história comigo. Vou porque aprendi que lendas são apenas lendas e que, para mim, passado é sorte e, mais do que isso, é parte de nós. Não há porque fugir ou negar, por pior que tenhamos sido e por maior dor que tenhamos sentido. Olhar para trás também faz parte da vida, e só consegue fazer isso sem pesar quem é grandioso e de coração aberto.


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