• Memórias de um bêbado:  sobre a vida sem você
  • Memórias de um bêbado:


    sobre a vida sem você


    Sábado à noite abro o armário e escolho a melhor roupa. Aquela que propositalmente passará a mensagem que quero. A que me deixará mais bonito, sem ser inatingível. A que me deixará gostoso, sem parecer fútil. A que me trará uma felicidade momentânea, um aconchego ao ego, mesmo que a única roupa com a qual eu gostaria de estar fosse uma calça de moletom velha para deitar ao seu lado e assistir à noite passar dentro de uma aconchegante taça de vinho. Primeira dose. Hora de encarar a noite de frente.

    O whatsapp grita, todos insistem em convidar para a alegria. O inconsciente pede desesperadamente para sair de casa, pois tudo me lembrará você. A noite chama. Ahh! Ela sempre me pareceu mais convidativa do que o dia: a cidade silenciosa, as luzes desenhando um delicioso charme às ruas. Passear por elas com você sempre foi uma descoberta: os risos em cada esquina, as conversas afora, o frio que nos unia em um único caminhar.

    Curioso como a mesma noite, agora sem você, ficou diferente. Encontro pessoas que parecem dispostas a tudo: a comemorar a alegria ou a esquecer a tristeza. A transformar aquelas poucas horas da madrugada na exorcização dos demônios da semana. O caminhar confiante, as risadas felizes na esquina de uma rua qualquer, as luzes dos carros iluminando as sombras. Sigo por um caminho que poderia me mostrar uma saída. Um caminho onde eu poderia encontrar você e instantaneamente apagar esta multidão ao meu redor. Uma multidão que me deixa mais sozinho do que jamais estive. Uma segunda dose surge.

    Um lugar escuro, pessoas cortadas por feixes de luz, música alta que torna impossível pensar. Mas não era esta a ideia? Não raciocinar? Lá vem a terceira dose. A alegria estampada nos rostos não combina com a tristeza dos olhos. Como eu gostaria de conseguir rir com os olhos, mas eles não me obedecem. Eles buscam encontrar você em todos os rostos. E encontra. E a agonia de ver você com outro me enlouquece. E desencontra. Ainda bem, não era você. Mas, onde será que você está agora que não te vejo ao meu lado, protegendo meu braço de esbarrões propositais? Olhando feio para qualquer pessoa que ameace se aproximar de mim? Será que você está feliz enquanto estou afundando em um mar de álcool?

    Preciso de mais uma dose. Já perdi as contas de quantas vezes encontrei você hoje à noite, e em nenhuma delas senti o seu abraço. Também não consegui sentir o seu beijo. Mas, desde o último, eu já sabia que não encontraria mais.

    Os beijos que encontro são diferentes. Não me levam a lugar algum. Não fazem meus pés saírem do chão. Não me deixam enlouquecido. Não me arrepiam. Não me arrancam um sorriso. São apenas beijos, em mais uma noite, em mais uma festa, em mais uma disputa de egos, em mais uma alegria instantânea que não quero pra mim.

    A bebida serve para relaxar, dizem as pessoas. A bebida serve para divertir, dizem os amigos. A bebida serve para sentir, diz o teor alcoólico. Mais uma dose, garçom. Eu não quero mais sentir. Porque, toda vez que sinto, dói. Porque, toda vez que sinto, lembro. Lembro que nosso amor foi perfeito demais para conseguir esquecê-lo, assim, com doses de vodka. Enquanto minha consciência estiver aqui, ela vai pensar em você.

    Os movimentos são desconexos, a música cada vez mais alta. As pessoas atingiram o êxtase da felicidade. Falta muito para eu chegar lá? Os sorrisos estampam os rostos como se fosse uma pintura. Mas sem vida. Alguns olhos me observam e eu retribuo, procurando encontrar alguma coisa. Procurando um motivo que me faça acreditar. Talvez algo que me engane momentaneamente de que aqueles olhos podem substituir você por alguns minutos. Mais uma dose. Um beijo surge. Um abraço vem. Elogios aparecem. Eu sorrio. Talvez eu até retribua um elogio. Talvez transemos e talvez seja ótimo. Talvez eu durma de conchinha. Talvez você até me faça esquecer que aquilo que procuro não está em você.

    Mais uma dose e encontrarei a tal felicidade. Por hoje.

    fernando


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