• “Eu não mereço sofrer” – sobre  a arte da vitimização
  • “Eu não mereço sofrer” – sobre


    a arte da vitimização


    Ando bem apreensivo com o futuro da humanidade. Muito mesmo. E não estou assim – com o pé atrás – apenas por causa das nossas opções de candidatos à presidência; ou somente devido à preciosa água de Sampa que, em outubro, muito provavelmente acabará. Estou preocupado, pra cacildis, com a notável quantidade de gente que anda se fazendo de vítima, e que, até em caso de esbarrão, ferroada de abelha ou céu nublado, sem vergonha na cara, tem reagido com um sonoro “eu não mereço isso!”.

    Entendo, perfeitamente, que ninguém merece ser discriminado devido à opção sexual, cor da pele ou justeza do vestido. E concordo, plenamente, com os que afirmam que as mulheres não merecem sofrer violência física e psicológica. Ah, e apoio – com unhas e caninos – os que acreditam que animal algum merece sentir dor para atender a caprichos idiotas do ser humano. Mas acho que a galera anda forçando a barra – e muito! – na hora de usar o tal do “eu não mereço”, e que estão confundindo, completamente, os direitos humanos (ou do consumidor) com não-me-toques gerados pelos Merthiolates que não ardem mais e por pais que tratam os filhos, desde o útero, feito reis incontrariáveis.

    Estamos na época do “direito a”, o que é ótimo, já que em um passado não muito distante, irmão, pouquíssimo se falava sobre o tema, e nada se fazia para punir os que se consideram no direito de invadir o direito alheio. É claro que muitos têm tocado no assunto somente para conseguir votos ou apenas para elevar a audiência do canal, porém, vejo que as coisas – mesmo que aos trancos e barrancos – estão evoluindo, e que importantes conquistas estão sendo feitas. O problema, a meu ver, são os mimadinhos que, sem bom senso e para fins egoístas, têm pegado carona nessa onda boa. E reivindicados direitos que nem afetadas estrelas do rock possuem ou teriam coragem de exigir no camarim.

    Outro dia, dentro do banco, uma dondoca teve um chilique do tipo que me fez, com muita força, desejar que um dardo com tranquilizante a colocasse para dormir. Acha que ela surtou por causa dos juros abusivos aplicados pelo Santander? Nada disso. Ela ficou inconformada por ter sido barrada – repetidas vezes – pelo detector de metal. E disse: “Eu sou uma mulher de bem, não mereço ser tratada assim!”. E o que é pior: por mais de dez minutos ela se recusou a esvaziar a bolsa. Como se ladrões entrassem em bancos com crachás de identificação e mulheres com um cartão fidelidade da Kopenhagen tivessem acesso livre a qualquer lugar do planeta. Uma frase usada por ela ilustra bem a tal da carona que eu citei no parágrafo anterior: “Eu tenho direitos, sabia?”. O segurança não respondeu. Mas eu deveria ter dito: “Claro que tem, senhora. Vários. Mas nenhum deles permite que você invente um novo por pura babaquice!”. Mas eu usei, apenas, o meu direito de permanecer calado.

    E o “eu não mereço” não tem sido usado apenas por egoístas e por seres que querem ficar em posição superior ao coletivo. O mundo está cheio de um tipo que, carinhosamente, eu chamo de “papai-como-sou-coitado”. Gente que recorre ao “eu não mereço” quando quer se passar pela bolacha mais injustiçada do pacote. “Eu não mereço demorar tanto para encontrar um marido!”, eu ouvi outro dia. Como assim “não merece”? E por que você acha que não merece isso? Por ter plantado uma árvore e dado moedas a um menino de rua na saída do McDonald´s? A lógica presente no clichê “eu me comportei o ano todo, logo mereço presentes no Natal” não funciona na vida real e adulta, infelizmente. E não adianta chorar. Pois se valesse, meu caro, professores dedicados e honestos nunca morreriam cedo e de câncer, e estupradores, pedófilos e políticos corruptos, todos os dias, seriam atingidos por meteoritos. Mas não é assim e você sabe bem.

    Em minha opinião, para evitar que o mundo fique superlotado de pessoas que não se acham merecedoras de frustrações naturais da vida humana, acho importante que os pais digam mais “A vida é assim, filha!”, e menos “Você não merece sofrer!”. Ou, logo menos, os gritos que reivindicam direitos irrefutáveis e necessários para uma sociedade melhor serão abafados por berros de gente mimada que, até por unha do pé encravada, sentira-se no direito de parar a Avenida Paulista. E de atrapalhar o meu direito de ir e vir antes do começo do Jô.

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