No princípio, os homens primatas saíam para caçar e defender o clã dos inimigos. Exibiam sua força e masculinidade, soltavam grunhidos horrendos e voltavam para o bando ao fim do dia, vangloriando-se. Enquanto isso, as mulheres faziam a limpeza da caverna, cuidavam dos primatinhas e assavam carne de veado na fogueira. E disse Darwin: evoluirás. Obedientes, aqui estamos lado a lado, em frente a telas de computadores, tomando cafés industrializados enquanto lemos mensagens instantâneas emitidas de longas distâncias.
Certa vez, cá estava eu, toda trabalhada na homosapiensidade, pronta para desligar o computador ao fim de nove horas de trabalho e partir para o curso de Inglês, quando uma última olhadela no Facebook me fez atrasar cinco minutos. Uma conhecida estava divulgando a notícia do seu casamento – algo corriqueiro, a não ser pelo interesse que me despertaram os comentários. Dentre os esperados “Parabéns!”, e até mesmo os “Você conseguiu!” (?), algo comum chamou minha atenção de forma incomum. Era um comentário que dizia: “Casamento é o grande sonho de toda mulher.”
Parei. O que eu estava fazendo da minha vida? Onde eu estava quando o Conselho Universal de Mulheres se reuniu para definir a grande meta da nossa existência? Qual dos empregos tomou o meu tempo? As aulas de pós-graduação, a academia, os freelancers, os botecos com os amigos, as obrigações domésticas, as séries, os livros, os textos… Eu não conseguia descobrir. Será que o convite foi para a minha caixa de spam e eu apaguei sem tempo de examinar, ou o carteiro desistiu de encontrar alguém em minha casa e devolveu a correspondência?
Não houve nenhum fato ou explicação grandiosos, mas foi no exato instante da leitura desse comentário que a minha consciência despertou atônita para o quanto de machismo ainda há nos discursos sobre casamento. E não é só isso: o quanto de machismo há nos discursos dos meus familiares, amigos, ex-colegas de escola ou de trabalho. Tempos depois, também no Facebook, me vi sendo linkada para o vídeo de uma cerimônia onde resolveram fazer uma brincadeira no momento em que a noiva joga o buquê. Reza a lenda que a pessoa que consegue agarrar as flores será a próxima a se casar. Ao invés de as mulheres aguardarem atrás da noiva, como dita a tradição (por que será?), eram apenas os homens que marcavam presença. Mas quando a noiva lança o buquê, todos eles correm para o lado oposto, fugindo da sina do casamento – em constraste ao hábito comum do público feminino, que briga para pegá-lo. Todos os protagonistas do vídeo se divertiam. Todos que comentavam o post se divertiam. Eu não consegui achar graça.
Mais pra frente, ainda no Facebook, meus olhos saltaram para a atualização de um álbum de casamento. E mais uma vez, uma brincadeira comum me chamou a atenção: em alguma comemoração antes da cerimônia oficial, o casal usava uma camisa personalizada com a imagem de uma noiva, feliz, segurando pelo braço um noivo claramente tristonho. As peças se diferiam apenas na legenda: na camisa dela, estava escrito “Start” (início); na dele, “Game Over” (fim de jogo). Todos que estampavam a foto se divertiam. Todos que comentavam a imagem se divertiam. Eu não consegui achar graça.
Podem me chamar de chata ou de feminista barata. Mas é que me incomoda essa herança torpe da época em que o casamento significava o grande marco na vida de uma mulher. Antes, mulheres casavam-se porque era a única forma de sair de casa, casavam-se para se livrar da ditadura de seus pais, casavam-se porque queriam fazer sexo, casavam-se porque não podiam estudar, casavam-se porque eram criadas para esse único propósito. Por vezes, casavam-se por amor também. Mas, sobretudo, por obrigação.
Retomados os fatos e queimados os sutiãs, arrisco dizer que casamento hoje é unicamente fruto de vontade. E há vontades para tantas coisas! Muitas mulheres realmente sonham com o casamento, com direito a véu e grinalda. Mas outra grande parte delas sonha em cursar um doutorado, abrir sua empresa ou fazer intercâmbio na Alemanha. Se muitas mulheres sonham em ter alguém, há aquelas cujo grande sonho é ser alguém. E há ainda as mulheres que naturalmente desejam tudo isso, mas sem fazer da união com outra pessoa o botão de “start” em sua vida.
Por outro lado, sobrevive na história o homem primata, que após alguns séculos ganhou a imagem do pegador, aquele que não quer compromisso, que trai as namoradas, mente para todas as garotas, só quer sexo a troco de não ligar no dia seguinte. Aquele que pensa a todo o momento que está em condições de superioridade, sem nunca imaginar que inúmeras vezes foi ele o bobo das relações. Sem nem desconfiar que mulheres também podem fazer sexo por tesão, sem esperar um cavalo branco estacionado à sua porta na manhã seguinte. Esse é o homem que na verdade é vulnerável ao apego, ao amor e aos desejos de família como qualquer outra pessoa, mas vai ostentar a imagem do casamento por obrigação, apenas quando o jogo da diversão e da liberdade precisar chegar ao fim. E confesso: esse é o tipo de homem que o único suspiro que consegue me arrancar é aquele que procede a um longo bocejo.
E agora eu fecho as minhas mãos em forma de oração, ergo-me aos céus e clamo: Ó, Darwin! Onde está a falha na sua teoria da evolução que deixou espécies como essas sobreviverem à seleção natural? Desculpem, amigos do Facebook e todos os demais, mas discursos como esses são machistas e retrógrados. Juro que consegui imaginar vocês acomodados dentro de suas respectivas cavernas após um cansativo dia de caça, discutindo novas técnicas para fazer fogo com gravetos e pensando em como a vida ficará mais fácil após a invenção da roda. E antes que eu esqueça: todos aqueles que destinam “Você conseguiu” para uma moça que fica noiva, e “Se lascou, cara” para o seu companheiro, deveriam ter ficado para trás, quando o querido Charles disse que só os seres evoluídos sobrevivem.
Em particular, eu nunca sonhei com casamento de verdade, desses com juramentos, assinaturas, bem-casados e chuva de arroz. Mas quero, sim, ter alguém. “Para rachar as contas do apartamento e o peso das sacolas do mercado”, como disse um amigo ao discutir comigo na primeira vez em que me manifestei a respeito, no Twitter. Para contar como foi o dia, dormir de conchinha, compartilhar planos e cuidados. É porque – pode parecer confuso – eu ainda acredito em amor. E acredito, sobretudo, que o amor se constrói, dia a dia, de igual para igual. E se esse amor caminhar para o casamento, com vestido branco e lua de mel, que seja o reflexo da felicidade e desejo de ambos, e jamais represente a conquista de um e o pesar do outro.
Por fim, eu acho que ainda prefiro ficar com o Onildo Bezerra. Afinal, “pra quê padre, pra quê juiz, se o que faz a gente ser feliz é amar?” E digo mais: cada um sabe onde encontrar a sua felicidade. Ela pode estar em um doutorado, na alegria de abrir a sua própria empresa ou no intercâmbio da Alemanha. Ela pode estar no desejo de juntar as escovas de dente ou no ato sagrado de colocar uma aliança no dedo. E felicidade, queridos facebookianos das cavernas, é particular a cada um. E o mais importante: ela não distingue os sexos.
Que Darwin continue tendo piedade de vós!