• Não queira me lembrar que sou mulher
  • Não queira me lembrar que sou mulher


    Eu era uma menina com o cabelo Joãozinho e que adorava jogar baleado. “Vem pra dentro, isso é brincadeira de menino!” Sempre gostei de gudes e era boa nisso, mas nunca pude praticar muito porque sempre ganhei bárbies de presente – mesmo nunca tendo sido questionada sobre as brincadeiras das quais eu realmente gostava.

    Fiquei mocinha e me apaixonei pelos games. Jogava do sofá da sala porque as lan houses não eram um ambiente propício para uma mocinha. Gostava de tatuagens e motos grandes mas o material escolar sempre foi da Disney ou das Menininhas.

    Gostava do garoto mais tímido da quinta série. Mas as amiguinhas – e a minha própria consciência patriarcalista – sempre diziam: você é menina, espere ele vir falar com você. Ele nunca veio e eu soube lá pelo ensino médio que ele alimentava também uma paixonite platônica por mim, que sofri anos a fio – aquele sofrimento dramático e pré-adolescente – por um óbvio acidente de percurso. Pura e simplesmente pelo fato de eu ser uma garota.

    E até hoje sou lembrada, com alguma periodicidade, de que sou mulher. Quando dou uma resposta áspera, quando tomo a iniciativa em um encontro, quando me tatuo, me maquio, quando abro meu guarda-roupas, quando escolho meus amigos, quando planejo meu futuro, quando administro minha rotina.

    Nunca é uma constatação como homenagem, mas, sempre e irremediavelmente, como ressalva: Você não pode porque você é uma mulher. Ou, o diferente mas não menos opressivo: Você tem que porque você é uma mulher.

    E assim como eu não podia comprar um caderno dos Power Rangers ou jogar gudes com os meninos da rua, eu não posso sair sozinha à noite, ou mochilar sem medo, ou falar alto, ou beber muito, ou fazer tatuagens grandes.

    Eu sou mulher e mulheres não podem tomar a iniciativa; é vulgar. Mulheres não podem ser sexualmente diretas sem assumirem o risco eminente de serem chamadas de promíscuas, vulgares, meretrizes. Mulheres precisam gostar de maquiagem porque não se pode expressar o feminino sem pintar o rosto; mulheres precisam sofrer em cima de saltos 17, sorrindo como bibelôs franceses numa sala de espera; mulheres precisam ser calmas, educadas, gentis e delicadas.

    Mulher não pode beber “como um homem”, nem dar no primeiro encontro, nem viajar sozinha, nem gostar de bebidas fortes. Mulher precisa casar antes dos trinta, adorar crianças e falar baixo. Mulher precisa assumir, diuturnamente, o peso insuportável de ser mulher numa sociedade patriarcalista.

    Então, não me lembre que sou mulher. Não me diga quantas coisas eu preciso fazer e não me fale, sobretudo, sobre aquilo que não me é permitido. Não queira que toda a minha personalidade se baseie em padrões de gênero, porque todos nós somos muito mais que isso. Não queira me lembrar que sou mulher. A única coisa que me lembro verdadeiramente de ser é livre.

    ass-nathalie


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